NANÁ
A Naná era um referencial pra quem a conhecesse. Em tudo. Bem resolvida, bonita, bem sucedida profissionalmente, levemente mística. Logo ela, que por muito tempo não foi dada a sobrenaturalidades, não frequentava – e segue não frequentando - igreja, centro, sinagoga, mesquita, nada. Nem ioga, gurus, esoterismos de tipo nenhum.
Era criticada por esse alto grau de desconfiança. O que ioga tem a ver com esoterismo, Naná?, perguntavam os amigos. Mas ela era irredutível. Achava que ioga tinha um jeito meio sobrenatural e já evitava. Era assim com tudo. Se a conversa derivava pro imaterial, ela já saía de banda. Isso, no início.
O processo que a levou ao sucesso profissional na medicina foi complexo, mas não pra ela. Aluna acima da média, no primeiro vestibular já entrou no curso historicamente mais disputado. E cursou sem as dificuldades que a maioria tem. Se sentia madura e preparada para exercer a profissão que escolhera, sem os medos que normalmente atribulam os jovens formandos. Querida por professores e servidores do hospital universitário, referência pros colegas em dificuldades, a Naná era quase um mito. No melhor sentido.
Graduou-se sem sofrer, fez a residência e recebeu o convite para trabalhar em um grande hospital particular. Relutou um pouco, tinha convicções políticas duras, apesar da serenidade com que levava a vida. Mas pensou no próprio sustento e nas possibilidades que a oportunidade poderia lhe dar. Era uma profissional respeitada, já no início da carreira, por alguns de seus maiores ídolos profissionais, recomendada pelos melhores professores, tida como a grande sucessora de médicos que fizeram história sob o juramento de Hipócrates.
Mas também queria SUS. Fazia questão. Uma das exigências que deixou clara na contratação para o grande centro médico privado era a necessidade de tempo para também dar plantões no SUS, atendendo a quem mais precisava. Conquistara, com seu desempenho espetacular na graduação e na residência médica, o direito de fazer escolhas nem sempre disponíveis para profissionais inexperientes. Teve o nome publicado, desde os tempos da iniciação científica, em grandes revistas internacionais de pesquisa médica ao lado de cientistas renomados.
O impressionante conjunto de qualidades e as conquistas derivadas da capacidade indiscutível da Naná não a tornaram uma pessoa de difícil trato ou arrogante. Era de uma doçura quase incompatível com todo aquele portfólio, o que criava a falsa impressão de “acessível emocionalmente”, se é que dá pra entender, para homens incapazes de pensar em outra coisa.
Mas falávamos, no início, do materialismo da Naná, qualidade destacada por ela mesma e base sólida da aversão que nutriu, por muito tempo, com o que, de alguma forma, desafiava os rigores da ciência, onde ela nadava de braçada sem suar muito.
Pois foi na correria do dia a dia que as coisas resolveram mudar. Entre uma viagem e outra de táxi ou aplicativo entre o apartamento de Botafogo, o hospital privado em Copacabana e o hospital público na zona norte, se esforçava pra driblar telefonemas de malas interessados em encontros românticos e estudar prontuários de pacientes envolvidos nos mais diversos tipos de acidentes. Era uma autoridade em traumatologia e ortopedia e as pessoas não paravam de se acidentar. No hospital privado tinha a seu dispor os melhores equipamentos, medicamentos e uma boa equipe, com os quais tinha condições de devolver qualidade de vida a acidentados graves, muitas vezes internados sem muitas perspectivas de recuperação.
No SUS tinha tudo isso também, mas com problemas graves de gestão, que terminavam por tornar indisponíveis alguns equipamentos, atrasar a oferta de medicamentos e desestimular uma parte da equipe que, em grande parte, como ela, tinha como questão de honra trabalhar para atender aos mais necessitados.
Fez sempre o que pôde pra salvar vidas, levar conforto, restaurar membros fraturados. Normalmente sacrificava projetos pessoais, deixava de cuidar de si e dos seus mais chegados, em nome da atividade profissional. Conseguiu avanços importantes e, ainda sem entender direito o que aconteceu, convenceu o conglomerado financeiro que dirige o grande hospital privado em que ela trabalha, a ceder pessoal, equipamentos e medicamentos, extraordinariamente, para suprir necessidades emergenciais na unidade pública, que vinha tendo problemas com a aquisição de suprimentos. Tudo ainda reflexo de ações desastradas na pandemia, quando a gestão jogava no mesmo time do coronavirus.
Do alto de seu agnosticismo, tentou uma explicação racional para aquele súbito amolecimento no coração de uma holding financeira de sucesso. Não conseguiu justificativa que não passasse pelo sobrenatural. Quando fez o pedido, tinha a intenção de conseguir um motivo para aumentar suas horas no SUS, com consequente redução na carga horária no hospital privado e maior dedicação a uma medicina de caráter social.
Segue trabalhando demais, mas agora não deixa de agradecer às forças do universo, sejam elas quais forem, que volta e meia surpreendem e atendem às suas preces.
O neoliberalismo, e disso ela segue tendo certeza, não faz concessões! Ao menos não sem intervenção divina...
Rio de Janeiro, abril de 2024.
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