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Foto do escritorLéo Viana

ABRIGO


O médico passou na hora de costume. Deu uma olhada geral, conversou com uns e outros ali no hall mesmo. A impressão foi boa. Ninguém especialmente abatido ou com sinais aparentes de infecções oportunistas, febre, nem dores além do padrão. Casa de repouso é assim. Há sempre a iminência de um mal súbito, ou ao menos que seja descoberto subitamente. A pandemia já tinha contribuído, antes do início da vacinação, para um relevante número de perdas. Estavam em jogo não só as vidas, todas ameaçadas por sua própria duração, numa sociedade injusta com quem tem mais idade. Naquele momento, também estavam sob ameaça a solubilidade financeira da instituição e de seus funcionários, abnegados responsáveis pela saúde daquela turma sênior.


Os quinze remanescentes, com variados tempos de estadia na casa, eram uma professora de francês, dois engenheiros, um mecânico e outro civil, duas empregadas domésticas postas ali por patrões que nutriam um misto de gratidão, culpa e caridade, cinco abnegadas donas de casa, dois motoristas de ônibus, um piloto de aviões, um bancário e uma arquiteta. A velhice os igualara, inclusive no que se refere ao distanciamento da família, ou principalmente por isso.


A professora gostava de lembrar a volta de De Gaulle a Paris. Não tinha estado lá, claro. Não tinha idade pra isso quando os alemães saíram da França em 1944. Mocinha no interior de Minas, soube de tudo com uma defasagem de uns cinco dias, pelo rádio. Mas pouco tempo depois, casada aos 17 com o filho rebelde do prefeito, se mudara pra São Paulo, onde conseguiu levar uma vida que não imaginara antes. Dois filhos e uma faculdade depois, já professora, veio com a família para o Rio de Janeiro, onde agora esperava seus últimos dias. Sem culpas, sem remorsos. Ajudou a uns alunos no tempo da repressão, foi a Paris levar coisas para exilados, aproveitando o domínio da língua e um certo salvo conduto que tinha. Filhos já adultos e avós, dificuldade de locomoção, foi parar ali.



 
 


Os engenheiros trabalharam juntos. Vieram parar no abrigo por indicações de uma família à outra. Muitos anos na companhia de águas. Eram do tempo em que tudo funcionava, mas para grupos pequenos. Também pertenciam a outro “momento tecnológico”, um passo atrás. Governos ruins, saneamento não universal, muita coisa a fazer, mas muito empenho das equipes. Muitos projetos, muita vontade de fazer o que tinha que ser feito. No fim, muita frustração. Viviam no mesmo aposento. Era a partir de lá que auxiliavam os demais em seus pequenos problemas técnicos de quaisquer áreas. Um rádio com defeito aqui, uma cama rangendo ali, uma janela que não fecha direito acolá. A direção da casa fazia vista grossa, sabedora da importância daquela atividade para eles.


Uma das domésticas era só gratidão. Acreditava muito nos patrões. A família a trouxe do Nordeste nos anos 50. A seca não facilitava as coisas lá. Já tinha uma irmã em Recife, na mesma lida. Ela já tinha 20 anos, solteira naquele sertão, ficando pra tia, porque muito brava. Acabou vindo pro Rio, direto pra Ipanema. Passou a bossa nova toda em revista, mas da área de serviço. Conheceu muita gente boa. Os meninos gostavam demais dela e de praia e violão. Pediam até pra ela cantar umas músicas do sertão. A fizeram estrela de inúmeras visitas de amigos. Com a morte dos velhos, ainda trabalhou para as famílias dos filhos, mas a artrose implacável não permitia mais esforços. Nem era possível viver só na casinha que comprara em Campo Grande. O aluguel a sustentava e os patrões pagavam o abrigo.


A outra cultivava um ódio antigo. Nunca se conformou com a vida que levara, maltratada desde jovem por pais, tios, vizinhos e patrões. Finalmente colocada no abrigo, que fica com a aposentadoria toda. Nenhuma das duas construiu família.

As donas de casa fizeram juntas a opção. Classe média da Zona Norte, acompanharam muitas novelas juntas, levaram filhos à escola e os viram partir pra tocar suas próprias vidas, todas viúvas e perto dos 80, tomaram a decisão de aproveitarem juntas os últimos anos. Nenhuma grande dificuldade, nenhum grande arroubo na vida. Muita missa, muita troca de receitas, muitas férias em Caxambu e Campos do Jordão, muitas compras de mês em grandes mercados de atacado.


Os dois motoristas tinham experiências diferentes. Um deles passou a vida na Dutra, fazendo até quatro viagens por semana entre Rio e São Paulo. Viu o auge e a decadência do transporte rodoviário de passageiros, desde o tempo das rodomoças, versão terrestre das comissárias de bordo, da Viação Cometa, ao esvaziamento causado pela popularização do transporte aéreo, passando pelas companhias piratas. Os casamentos não duravam. As viagens constantes eram um adversário duro de ser vencido. Os filhos o culpavam pela instabilidade e, mesmo com três diferentes mães, os quatro não hesitaram quanto ao abrigo. O outro era urbano, dirigiu muito Méier-Copacabana, muito Grajaú-Leblon, muito Nilópolis-Central, à medida que mudava de empresas, porque empresa de ônibus não gosta de funcionário antigo. No final da carreira, ganhando como novato, virou um peso pra família, que o mandou ao repouso.


O piloto mostrava sinais claros de demência. Talvez resultado do excessivo estresse a que fora submetido em tempos sem tanta tecnologia. Um casamento duradouro e o elevado padrão de vida não foram suficientes pra garantir maior dignidade que um asilo. Suas permanentes demonstrações de felicidade, no entanto, talvez evidenciassem mais que a demência e simbolizassem alguma liberdade.



 

A vida sem samba seria um erro! Fred Nietzsche Carioca... (livre adaptação).

 

O bancário não tinha as manias que a maioria dos outros tinha, mantinha uma impressionante lucidez do alto de seus 85 anos e só reclamava que os parentes até hoje achavam que ele deveria fazer as declarações de imposto de renda de todos. Logo ele, que era um cara analógico e conhecia mais de ábacos que de computadores. Todos os anos tinha que brigar com a parentada, o que os afastava até a próxima temporada de declarações.


A arquiteta passava o tempo desenhando. Abdicara de falar havia tempos, apesar de apresentar boa saúde física, visão surpreendentemente boa, bons resultados de audiometria. Não deve ser fácil ter 87 anos. Já tinha desenhado todos os colegas de infortúnio, médicos(as), enfermeiros(as), cuidadores(as), nutricionistas e fisioterapeutas.

A pequena comunidade não era o melhor resumo da sociedade, mas funcionava bem. Ajudavam-se constantemente no que se refere aos medicamentos e necessidades básicas da idade. Os mais fortes em geral apoiavam os que tinham dificuldades de locomoção. A circulação de fraldas geriátricas era intensa. Os rodoviários eram músicos. Não raro lembravam juntos as canções da juventude. Uma festa sempre, com violão e flauta. A ex-doméstica nordestina – que também tinha notáveis dotes musicais - cantava com eles. Uma vez por ano havia exposições dos desenhos da arquiteta. Os parentes dos residentes não vinham, mas as famílias dos servidores da clínica lotavam a galeria improvisada.


 

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A qualidade dos desenhos era impressionante e mais de um dono de galeria já tinha mostrado interesse. Ela pensava consigo mesma que expor numa galeria era a última coisa que desejaria. Aquilo traria uma notoriedade que ela não queria mais pra sua vida. Tinha na memória os grandes projetos, trabalhara com grandes obras públicas. Praças, hospitais, escolas, rodoviárias, aeroportos. Havia pelo menos uma plaquinha com seu nome em dezenas de lugares pelo país. Não queria mais daquilo. Desenhava por amor a seus novos amigos abandonados ali, como ela. A professora sonhava, em francês, com Paris. Nesses dias acordava iluminada, mais jovem até. E era nesses dias que, com uma simpatia incomum, se dispunha a contar histórias para todos. A maioria delas de autores franceses, claro. Mas nada que impedisse o sucesso dos saraus de história que fazia. As mais entusiasmadas eram as donas de casa. Ouvintes atentas, sempre que possível reuniam-se inclusive pra lembrar das histórias. E não só dessas, mas de todas as outras que viram e viveram juntas ou separadas.


O piloto e o bancário, um sorridente e o outro sério, lembravam juntos de tempos melhores, mas conformavam-se com o que o presente lhes reservara. A comida era melhor que a dos aviões. E pior que as dos botequins e restaurantes perto do banco.

Os engenheiros viviam despreocupados quando não havia coisas a montar ou reparar. Nos eventos, preparavam tudo, coordenando os funcionários da casa. Fosse na montagem de cavaletes para as exposições, fosse na organização de locais para saraus de música, poesia ou literatura. Havendo o que fazer, estava ótimo.

O abrigo não era, vale repetir, o melhor espelho da sociedade que vivia em volta, mas a surpreendente interação entre gente de origem diferente ajudava a deixar claras as possibilidades de um mundo menos belicoso, ao mesmo tempo em que evidenciava o abandono a que os mais velhos estão sujeitos, num mundo onde a juventude é um ativo valioso.

 

Na dúvida, eu escuto o CD Roda do Samba do Bip Bip. Sem dúvidas, também.

 

Não bastasse a pandemia e o rastro de destruição e morte que a acompanhava, era notável, desde há algum tempo na sociedade brasileira, uma polarização tão radical quanto estranha, em que um lado defendia a negação do óbvio.

Estranhamente, esses elementos de radicalização não tinham manifestação clara no interior do abrigo. A casa de velhos era objeto de um trabalho inovador.

Como resultado de uma grande pesquisa internacional liderada por países europeus, foi utilizado um medicamento desenvolvido em algum laboratório sombrio, com intenções não menos obscuras, capaz de apagar a memória recente e transferir a relação com os marcos cronológicos, bastando que não fossem incorporadas novas informações complexas de natureza temporal.


Como parte envolvida na experiência, o abrigo se encarrega de mantê-los longe do noticiário e bloqueou os acessos às redes sociais. Fernando Henrique ainda é o presidente e gente eventualmente vista com camisa amarela é torcida da Seleção Brasileira. Ninguém aparentemente duvida do formato da Terra, o Brasil é todo vacinado e as milícias, já fortes, exercem seu poder apenas em cantões da Zona Oeste do Rio. Muitos artistas novos não existem mais em seu imaginário, mas nenhum que os tenha tocado profundamente, enquanto outros voltaram às suas referências antigas, com muitas e felizes redescobertas.


O início do século XXI não é especialmente bom, mas também não é especialmente ruim.

Histórias comuns, mas todos foram medicados a partir de dezembro de 2018 e tiveram suas referências temporais deslocadas para a o ano 2000. Pra eles, o melhor do Brasil ainda vai acontecer. Se resistirem à pandemia - já vacinados, têm grandes chances - terão provavelmente uma velhice mais feliz. E alienados, em suas memórias alteradas, com sorte não alcançarão a tristeza do tempo presente. A única dificuldade foi explicar a necessidade do uso da máscara. Mas não houve muita reação.


No quarto dos engenheiros, um poster pregado na parede trazia a frase de Clarice Lispector:

Os ignorantes são mais felizes.


Rio de Janeiro, maio de 2021.


*OS.: é ficção, claro. Mas não seria ruim se fosse ao menos parcialmente real...


 

O que acontece de importante na Internet?


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Gisa Nogueira, uma grande dama do samba!




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