Artigo / ANTIGO
Tinha problemas, o cara. O fato de haver nascido às vésperas do AI-5, em um ano tão memorável quanto sombrio, não o ajudava. Com pouco que lhe causasse orgulho em seu tempo, preferia a abstração dos tempos idos, saudades de um passado não vivido, mas sentido. Identificava-se com o não visto, com a cidade já soterrada pelo concreto e pelo asfalto mais modernos; com os bondes que, a essa altura, limitavam-se à clausura carmelita de Santa Teresa, sempre na iminência da extinção, que como dizem, é para sempre.
O passado lhe pesava como se fosse, de fato, seu. Pairavam sobre ele culpas de outros tempos, tão presentes que, por vezes, a sensação de réu o comprimia contra os muros das antigas fortalezas do Leme ou da Urca, ameaçado por portugueses, franceses ou índios, sem distinção. Nesses momentos, deixava-se sofrer. E ao sofrer, transportava-se, sem reagir, a seu próprio tempo, tão ausente.
O Rio de Janeiro o acolhera como uma moderna mãe. As modernas mães, ele acreditava, não mais tratavam tão carinhosamente os filhos. Permitiam a eles o gozo de uma liberdade não escolhida, mas compulsória, obrigatória. Procurava relacionar-se assim com a cidade. Conhecia-lhe os defeitos e as virtudes, o passado e o presente, os becos e vielas, as noites e os dias. E cobrava da cidade o carinho negado pelo comportamento típico da metrópole.
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Nas entranhas da cidade grande enxergava as veias anabolizadas que substituíram as antigas artérias. Via os intestinos gigantescos onde se acumulavam os paquidérmicos excrementos do monstro urbano. E sofria ao imaginar o cérebro da mãe enlouquecida, tentando organizar o não-organizável, viabilizar o inviável, esgotar o inesgotável. Em meio a essas divagações, penalizado, a perdoava.
Tinha uma única fixação no presente, ou duas... talvez três. A cerveja, que lhe era íntima, tanto quanto alguma música e alguma literatura. Entretanto, como qualquer fixação, cumpriam função simplesmente entorpecedora, lisérgica, sem necessariamente distrair. A ordem importava pouco. Lendo sem beber embebedava-se tanto quanto bebendo sem ler. Parecia lembrar-se de haver tomado glicose após uma jam session mais intensa.
Na mais recente de suas frequentes visitas ao passado, caminhava a esmo pela Avenida Central. Quase foi colhido por um Central x Qualquer Coisa, apesar de acreditar que se tratava de um Ford Bigode, ou de um Rabo de Peixe. No máximo um Simca Chambord. Buscava o Café Nice, que, como se sabe, além de perder o charme, mudara-se das imediações da Galeria Cruzeiro para as proximidades do Monroe. Adentrou ao Edifício Avenida Central. Não reconheceu o velho Tabuleiro da Baiana, onde os bondes faziam a volta. Entre idas e vindas desencontradas, avistou o Teatro Municipal. Alívio. A Escola de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, o Amarelinho, o Cordão da Bola Preta.
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Mas havia gente demais, velocidade demais, aflição demais. Mudanças que o tempo consagrou, mas que seus trinta anos não assimilaram. O canteiro central da grande avenida havia desaparecido. Um novo bonde circulava, moderno. Pessoas saíam felizes e arrumadinhas de um buraco no meio da praça, como se lá tivessem passado bons momentos. Distraíra-se e caminhara involuntariamente para o meio da frenética avenida. Dessa vez o ônibus não parou no cruzamento.. Ele, no último e fatal segundo avistara, feliz, um velho bonde.
Parecia sorrir na chegada ao São Francisco Xavier.
O Caju é, afinal, um bairro antigo.
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