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ATENÇÃO 




Ela atravessou a rua sem a preocupação normal de olhar pros lados. O motorista do carro vermelho, que vinha da direita, buzinou em cima. O do carro cinza, que vinha da esquerda um pouco acima da velocidade recomendada para aquela ruazinha de subúrbio, foi alertado pela buzina do vermelho e enfiou o pé violentamente no freio, o que evitou o acidente. A Martinha, no entanto, seguiu seu caminho incólume, ignorando os xingamentos e maledicências que ambos os motoristas dirigiram a ela depois do ocorrido. 


A Marinha não era surda. Mas era distraída e, paradoxalmente, concentrada em seus pensamentos. 


Não tinha sido sempre assim. Tinha uma inteligência acima da média, diagnosticada bem cedo. Era sempre uma espécie de líder da turma que mais arranjava encrencas na escola, mas se mantinha, apesar disso, num patamar superior de aproveitamento, o que criava constrangimentos para as amigas e amigos de bagunça. Era a preferida dos professores e professoras, orgulho da família e da vizinhança. E colecionava medalhas de competições estudantis. Olimpiada de matemática, química, física, premios de redação, campeonato de handebol, vôlei, torneios de judô. Um fenômeno, a Martinha.


Aos 17, como os melhores alunos da sua geração, a Martinha se viu diante da difícil escolha de sua carreira. Difícil mesmo e especialmente pra ela, que gostava de tudo.Podia fazer letras ou medicina, educação física ou direito, ciências sociais ou engenharia nuclear. Sofria com a escolha, mas adorava o conhecimento. Queria poder fazer tudo, mas isso era impossível. Queria abraçar o mundo, estar em todos os lugares, resolver todos os problemas. A Martinha tinha uma certa – e positiva – megalomania. Era aquela que sempre queria reunir os amigos, queria festejar a vida, rir de tudo e de todos. Sofria calada as suas impossibilidades, mas festejava estridentemente as conquistas e amizades, que eram muitas.


Pediu um tempo para os pais, antes de tomar aquela decisão importante. Ia fazer como tinha visto num filme, um intercâmbio voluntário, uma espécie de estágio. A vidinha de classe média baixa não permitia grandes estripulias, apesar do esforço dos pais pra garantir o possível pra filha talentosa e única. Nem pediu pra ir ao exterior ou sair pra localidades distantes. Vencida a resistência da família, foi ser voluntária numa ong que tocava um projeto social numa favela conflagrada na Zona Norte do Rio. Foi um ano de aprendizado profundo, de alegria e tristeza, de convívio diário com dores e sofrimentos que ela nem sabia que existiam, e olha que ela sabia muita coisa. Ganhou uns afilhados, muitas amigas, ao menos uns dois amores que lhe balançaram a existência em momentos diferentes, se fez adulta na marra, na vontade de crescer e ver o mundo de outro jeito.


No final daquele tempo, tinha se tornado uma pessoa diferente. O mundo que queria abraçar tinha se tornado mais cinzento, mais feio, menos conto de fadas e mais filme de guerra, ainda que tambem tenha sido possível ver esperança naquela gente que ralava dia e noite, mas que fazia festas incríveis, se esbaldava em bailes funk semanais e ajudava a colocar na avenida a escola de samba do morro, num espetáculo lindo, que encantava o mundo todos os anos. Havia esperança, apesar da extrema direita, de Trumps, Musks, Putins, Netanyahus e quetais, inclusive aqui, onde esse parecia um risco distante depois da redemocratização. Era interessada nisso também. Estudara muito os anos de chumbo, até os problemas da lei da anistia e as recaídas autoritárias que ficaramevidentes nas eleições de Collor de Mello e de um recente, de quem ela também não gosta de dizer o nome.


Mudou, porque precisava focar em alguma coisa. Gostava de tudo, mas pra serrealmente útil, precisava escolher.


O segundo dos namorados vingou. Bom garoto, cria do morro, estudioso como ela, preocupado com o futuro sem tirar os olhos do passado, da comunidade, das mazelas e alegria da favela. O trauma com o som dos tiros era a justificativa pra defender uma cultura de paz absoluta, onde não houvesse arma, nem mortes violentas. Juntos, seriam imbatíveis na defesa desse projeto. O que seria mais importante que isso? Nada. O tal foco desejado veio com tudo. A antiga Martinha de mil habilidades e atenções dispersasera outra agora. Virou jornalista, não perdeu muito das habilidades que já tinha, mas se concentra no essencial. E se quase foi atropelada é porque ia, correndo, cobrir uma intervenção violenta da polícia exatamente no lugar que lhe marcou a vida pra sempre.


Conseguiu. Faz denúncias o tempo todo, consegue financiamentos estrangeiros, dedica os prêmios que recebe a quem precisa, inclusive repassando integralmente as quantiasque ganha em forma de premiação.


Mas, toda vez que arruma um tempo, ela bate uma bolinha e reúne os amigos e amigas de sempre.


Mudou, mas não tanto. Só não presta mais a mesma atenção a tudo.

Mas quem presta?

 

Rio de Janeiro, abril de 2025.


 

Nossa homenagem aos inesquecíveis Alfredinho do Bip Bip e Leo Vascaino


Playlist de alta qualidade, na Spotify / Cedro Rosa


 

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