Ayahuasca e a Maçã
A maçã representa a queda do paraíso, a consciência do mal e do bem, o fruto da árvore do conhecimento, a tentação, e mais. Coitada da maçã, mas finalmente, ela é a fruta que melhor se pode dividir ao meio e ser transformada em metades opostas.
A maçã significou também a marca dos Beatles, e nos tempos atuais, a dos produtos Apple. Os lançamentos desta companhia não deixam de fazer jus `a simbologia religiosa ao aumentar o acesso ao reino do conhecimento- da exatidão que para ser ‘exata’ tem que amputar o sim do não- em outras palavras, ao reino dessa parte de nós que nos dividiu também em dois, pois que a autoconsciência, o que nos permite o conhecimento, nos representa por estar dividida de nós; por estar na posição de espectadora. Nos representa vistos por nós mesmos, pelo que pensamos que somos.
Ayahuasca não é símbolo. É a voz da floresta e do cosmos, o resgate do sagrado e a reconciliação dos opostos. Essa medicina fala pelo nosso coração, por nosso ser direto e não por aquele que a nossa consciência racional inventa para nós. Porém, em casos extremos onde existem tendencias megalômanas, ela pode aumentá-las. Isso me lembra uma recente cerimonia em favor da qual arranjamos espaço aqui nos Estados Unidos para que um pajé de passagem com seu grupo conduzisse um ritual de ayahuasca (trazendo a cantora oficial, o ‘organizador’ americano que o vem acompanhando fora do Brasil, e a tradutora) para a casa que alugamos no alto das montanhas.
A autoridade da civilização flerta com o puritanismo justamente por ser unilateral, e o tal americano só via proibição em tudo que acontecia entre os participantes, fosse o sussurro mais discreto, considerando “desrespeito” ao ambiente policial que queria impor. Aquele cara invasivo e reprimido age como um organizador profissional e por isso se elege- acima do pajé- chefe que dita regras e impõe uma hierarquia completamente oposta `a irmandade promovida por ayahuasca. Parece que os “civilizados” não podem viver sem se impor, sem se apoiar em regras e na autoridade que através delas constroem pra si mesmos por não conseguirem viver sem reprimir os que consideram abaixo deles e sem serem reprimidos pelos que acham mais poderosos e acima.
O tal censor na cerimonia a que me referi me lembrou, como oposto da sua atitude, o que um de meus tios dizia, “Não há ninguém que não possa nos ensinar alguma coisa, seja pobre, ignorante, ou discriminado pela sociedade”.
Este tio, que era socialite e esnobe, nem por isso se tornou incapaz de ver a riqueza do indivíduo, o indivíduo ‘nu’ e independente de atribuições e valores sociais. O censor, que por outro lado se havia investido de autoridade policial, e no seu volumoso tamanho, olhava todos em função de suas regras massificantes, vigiava a sala mais do que cheia com atitude julgadora. Se metia a criticar as posições das pessoas, as trocas mais discretas entre elas, mas se mostrava incapaz de ajudar alguém quando realmente era preciso.
Uma das metades da maçã, símbolo tão presente hoje, pode ter representado a censura que o justificou ficar patrulhando todo mundo. Pois regras, autoridade, e divisões rigorosas entre o que pode e o que não pode vêm de mãos dadas com a destruição da espontaneidade, daquilo que a inteireza da maçã pode representar. Os índios, para naturalmente não fazer o que não devem, não precisam dessa camisa de força que as regras constroem. O respeito que têm `a medicina lhes basta. Por isso, o pajé reflete liberdade e disciplina, a constante abertura de ayahuasca para a criatividade. Sua autoridade consiste no fato de que ele transmite convicção de dentro para fora, o que também expressa a espontaneidade de sua disciplina. Mas o ‘civilizado’, encarcerado na sua gaiola de poder sobre uns e submissão a outros, tem que seguir regras justamente por não ter essa convicção ou tampouco espontaneidade.
A tradutora oficial naquela cerimonia, por sua vez, reportava, num tom de cansaço condescendente como se estivesse fazendo um grande favor a alguém ‘inferior’, o que o pajé falava com todo o seu ser. Pessoas como ela escondem o seu desrespeito a quem na verdade consideram abaixo de si e que ‘usam’ afinal como simples prova de autenticidade indígena do que estão vendendo, no caso, das cerimonias de ayahuasca. Ela era mais que brasileira, mas me chocou com a sua incapacidade de confessar sua origem. “Sou de muitos lugares porque vivo em muitas partes,” respondia quando lhe perguntavam de onde era, fazendo-me lembrar um dos personagens mais pedantes de Proust, (Legrandin) um cara que para não dar as respostas que não desejava as substituía por informações vagas.
Se ayahuasca não ensina humildade para a cultura ocidental, que continua a se agarrar com um imperialismo que disfarçam por terem os índios e essa medicina da floresta virado ‘moda’, em que, então, pode ajudar essa cultura decadente?
Tal questionamento me reverteu ao que sempre pensei e que psicólogos confirmam: Querer transcender sem cuidar dos seus problemas e contradições, da sua carência, dor, medo, preconceitos e condicionamentos, é como querer atingir o último degrau de uma grande escada sem subir todos os outros que o precedem. Isso significa evitar a sua dimensão humana pensando ser possível virar eleito de Deus `as pressas, tomando ayahuasca.
Ainda assim, acho que a medicina vai chegando `as pessoas certas, às que são capazes de compreender que os índios não precisam da censura delas e que devem trocar a autoridade de um policiamento inadequado pela humildade de um coração desarmado, substituindo a hierarquia que criam e na qual se apoiam, pela irmandade.
Os pajés de quem sou amiga me disseram que os rituais que conduzem na floresta não conhecem regras. As pessoas entram e saem do espaço onde são conduzidos, e podem participar deles deitadas nas suas redes ao invés de ter que sentar-se com a coluna ereta (posição exigida pela maioria dos organizadores autoritários). E tudo isso se passa ao ar livre. Yube Hunikuin, um dos indígenas mais inteligentes que conheço, falou que como nas cidades tudo gira em torno da propriedade privada, dos espaços fechados e limitadores, ele compreendeu a atitude dos ‘brancos’ em função dessa limitação.
Mais uma coisa sobre a maçã: Tivesse Steve Jobs conhecido ayahuasca, ele, que era místico e vivia citando a ampliação mental que lhe deu o LSD, poderia ter mudado o mundo pela segunda vez, promovendo, ao lado da conexão eletrônica e impessoal da internet- ligação abstrata que não reconcilia ninguém por si mesma - a rede inclusiva do amor, a que une, sem mediação da tecnologia, todos os seres da criação à terra, ao cosmos, e a si mesmos, através da mão de Deus.
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