Bichos
Ela não gostava de cobras. A educação cristã do colégio das irmãs a fizera antipatizar de modo irreversível. “A serpente é o símbolo do mal”, pensou imediatamente, quando a jiboia gorda apareceu na porta dos fundos.
A racionalidade desaparece em horas assim. A verdade é que quase ninguém gosta de cobras, mas nem todo mundo pensa no Jardim do Eden. Há outras e variadas razões pra não se ter simpatia por elas, claro. Grande parte delas é venenosa, oferece risco objetivo. A psicologia ainda fala coisas sobre o fato de serem seres rastejantes, há alusões ao formato, às escamas, aos olhos vidrados, à boca, à falta de membros, à temperatura do corpo (isso para aqueles que, normalmente involuntariamente, chegam à intimidade de um toque), enfim, cobra não é um animal simpático, a priori.
Mas dar de cara com aquela jiboia ao sair pra varrer o quintal era mais do que o suportável. Resistira muito a ir morar na borda da floresta. Quando as crianças eram pequenas, num momento de especial sucesso profissional, o marido propôs saírem do apartamento pequeno em Copacabana para uma vida mais próxima à natureza nas bandas do Itanhangá. Os preços praticamente se equivaliam e as crianças teriam espaço para brincar, menos barulho e fumaça. Era mais longe da praia, mas ainda não havia a paranóia da iminência da ocupação dos terrenos vazios no entorno e a violência, que anos depois se tornaria uma chaga em muitas áreas da cidade. Alguns amigos alertaram sobre a ocorrência de animais selvagens, inclusive cobras, mas isso não parecia grave.
Loucura de Amor!
Pessoas já moravam lá. Não podia ser tão inóspito. Não estavam se mudando para a Transamazônica ou para a Transpantaneira. Era só ali no comecinho da Barra. “Qualquer dia tem até metrô perto”, matutava, de modo a minimizar o incômodo que sentia.
Agora, bem mais de trinta anos depois, perfeitamente adaptada, tinha na memória visual diversos gambás, ouriços, dois ou três bichos preguiça, sabia diferenciar passarinhos. Lembrava de ver, de longe, umas cobrinhas do tamanho de um lápis, mas aquela bichona, uns vinte quilos de cobra parados ali perto do banco dos fundos, onde ela tomava sol, isso era novidade e horror. Um bicho daquele tamanho podia devorar cachorros, gatos e, eventualmente, crianças. Nem a serpente do Eden devia ter aquele tamanho todo. O tanto de pensamentos que teve enquanto observava era inversamente proporcional ao tempo que passou ali.
A fuga foi quase imediata. Não sabia o que fazer. Um bicho daquele tamanho não é adversário fácil, ainda mais quando se tem pavor dele. É o tipo do oponente que ganha a disputa com a mera presença.
Matar, não mataria. Não gostava do bicho, mas entendia que era um animal silvestre, tinha papel no ecossistema e essas coisas que os filhos repetiam sempre que aparecia alguma fauna no quintal. E matar animal silvestre é crime. O curso de Direito, profissão nunca exercida, deixara coisas na memória.
Ah! O vizinho do lote ao lado é biólogo aposentado da universidade! Bela lembrança! A melhor lembrança numa hora dessas! Numa outra ocasião, o prestativo vizinho acolhera um filhote de mico estrela que desabou aqui no quintal e, na passagem, ainda apontou um ninho de maritacas que ocupava o topo do coqueirinho anão plantado quando terminaram a reforma da casa para a mudança.
O vizinho era um entusiasta da fauna da mata atlântica, chamava bichos e plantas por seus nomes científicos e ficou maravilhado diante daquela Boa constrictor. Boa?? Só se fosse pra ele! Um bicho horrível, enorme, assassino! Sim, o nome científico da jiboia é Boa. Vem da família boidae, que é composta por cobras não venenosas de porte médio a grande, que matam suas presas sufocando-as com seu corpo musculoso. É a mesma família das grandes sucuris, que os americanos chamam de anaconda. E ainda as fazem protagonistas daqueles filmes horríveis.
Após a breve explicação do vizinho, que sozinho talvez também não conseguisse tirar de lá a serpente preguiçosa, ligaram juntos para o corpo de bombeiros. A bichona provavelmente tinha comido algum bicho de tamanho razoável ali por perto, tamanha a preguiça que demonstrava. O papo rendeu entre os dois ali e serviu pra acalmar a moradora. Desde que as crianças cresceram, se formaram e foram embora, a casa no Itanhangá virou uma solidão só. Decidira permanecer lá, mesmo após a morte do marido, para ter o prazer de ver os netos correndo onde os filhos correram, entre as plantas, pegando frutas no pé e vendo eventualmente algum bicho. Nada como aquela cobra monstruosa, claro.
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Mas um gambazinho, um passarinho bonito, um tucano, um mico, esses que não assustam ninguém. O vizinho se sensibilizou com a história. Ele, solteirão, vivia ali desde há muitos anos. Fora dos primeiros moradores, num tempo em que chegar ali demandava atravessar o Alto da Boa Vista. Biólogo novo, formado e já empregado na universidade, cruzava a cidade de jipe todos os dias pra dormir no mato. Hoje, cheio de vizinhos ricos, lamenta que a cidade tenha chegado tão perto, mas dentro de casa ainda se sente como nos velhos tempos, inclusive porque de vez em quando há surpresas como a cobra que agora visitava a vizinha.
Comemoraram juntos a chegada dos bombeiros. Dois jovens soldados e um oficial, parecia. Entraram, pegaram o bicho com cuidado, ensacaram e levaram. Educados e prestativos. Agradeceram ao chamado e recomendaram que em casos assim, essa era a coisa certa a fazer, nunca matar o animal ou tentar manejá-lo. O professor se identificou, agradeceu também e ficou tudo certo. Adélia, a dona da casa, estava maravilhada com o desempenho dos bombeiros e com a figura do professor/biólogo. Os filhos vinham pouquíssimo ao Itanhangá e não pareciam dispostos a realizar o sonho da mãe. Não tinham filhos e isso aparentemente não estava no radar deles. A filha num doutorado na França e o filho numa ONG na África, ligavam sempre, reiteravam que voltariam em breve, mas não davam mostras objetivas de que isso algum dia se realizaria.
A conversa com o professor rendeu. Ele beirava os 70, ela os 60. Ela sonhara ser bióloga quando criança. O medo de répteis e a história do Jardim do Eden a fizeram entrar no Direito, mas a vida e a aptidão acabaram fazendo com que ela dividisse a vida entre os filhos e a lojinha de roupas em Ipanema. Incontáveis as viagens entre a Zona Sul e o Itanhangá, quando isso ainda não era tão comum.
Joseph, o professor, filho de diplomatas americanos, desertou da família quando os pais serviam no consulado americano do Rio, em tempos de ditadura no Brasil e guerra no Vietnã. Indiferentes, nunca repreenderam a escolha do filho, mesmo achando que ele, obviamente, estaria melhor em Nova Iorque. Ele declarava abertamente não conseguir entender mais o mundo sem o calor humano que aprendeu a sentir aqui, em meio às manifestações que antecederam ao AI-5. Frequentava escondido, claro. Deu sorte de nunca ter sido descoberto.
Saudade de escutar MPB, né minha filha, meu filho... Espia aqui.
Interessado nos trópicos, estudou biologia. Aos 24 já era mestre e professor contratado. Nunca mais abandonou o Brasil, salvo para conferências e bancas no exterior, convidado por universidades mundo afora. Passou a saber mais de mata atlântica que a maior parte dos estudiosos nativos, mas não se orgulhava disso. Lamentava um certo desprezo local pela natureza exuberante. Mas agora, importava mesmo era estar ao lado da vizinha.
O conhecimento mútuo das histórias e a tranquilidade trazida pela idade simplificaram as coisas. Beijaram-se depois do café. Ela mostrou as fotos dos filhos. Ele a convidou para ver a coleção de insetos.
Conversaram sobre tudo, estudando-se mutuamente antes de falar da atual situação do Brasil. Nunca se sabe. Descobriram, a tempo, que estavam do mesmo lado. Riram muito da desconfiança, antes de maldizerem a pandemia e o rumo que as coisas tomaram de uns tempos pra cá.
Meses depois, já faziam, juntos, pequenas expedições pela mata que cerca o condomínio.
Ela pensa seriamente na proposta de derrubar o muro que separa os dois terrenos.
Se ainda hesita é porque tem a leve desconfiança que a grande jiboia veio do terreno dele.
O medo de cobra ela não superou.
Mas tem certeza que há bichos muito mais perigosos e repugnantes...
Rio de Janeiro, abril de 2021.
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