CARNAVAL...

O lusco-fusco do início da manhã , com o Sol nascendo preguiçoso na época correspondente ao inverno no Rio de Janeiro, que na verdade é uma espécie de verão com dias mais curtos, iluminava a janela do quarto, fazendo vazar pela ripa que faltava na veneziana, o raio de Sol que atingiu os olhos sensíveis da Ivonete. Já fazia tempo que a tal ripa tinha caído, mas o isolamento obrigatório provocado pela pandemia de Covid impedia que tomasse medidas mais enérgicas. Preferiu adotar o raio incômodo como um despertador. Era silencioso e eficaz. Faltava a ela apenas um motivo pra acordar cedo, visto que tinha o tempo do mundo, sozinha em casa, para fazer o que quer que fosse, sem a necessidade de seguir uma rotina como aquela a que se submetia quando era a secretária executiva de um grande escritório de advocacia.
O amplo apartamento, num prédio antigo e preservado, era grande demais pra ela desde que o casal de filhos gêmeos, agora com doze anos, decidiu passar um tempo na casa da avó. Tomados desde o início todos os cuidados sanitários recomendados, a Ivonete ficou tranquila e agora temia que eles voltassem, num momento mais difícil da pandemia, correndo o risco de contaminação, exposição da avó ao vírus e até dela mesma. Falavam-se diariamente pelo aplicativo de mensagens. Sentia falta das crianças, mas sabia que tinha feito um bom trabalho na educação e no desenvolvimento da autonomia deles. E a pandemia era uma coisa passageira, tinha certeza.
Eles estavam acompanhando as atividades escolares, enfim. Tudo estava, na medida do possível com uma pandemia e um governo negacionista, andando bem.
O prédio tinha pouco movimento. Uma parte grande dos moradores, da classe média da Zona Sul, viajou para suas casas de praia ou campo, montanha, etc, pra viver de lá essa emulação de apocalipse que foi a pandemia. Ivonete não sabia ao certo quantos moradores tinham ficado, mas tinha certeza que eram poucos, a julgar pelo silêncio que reinava praticamente o tempo todo.
Até que em um dia – difícil dizer qual, pois todos eram tediosamente parecidos – ouviu um som muito agradável vindo de um ponto que não conseguia identificar imediatamente, mas a musica era suave e próxima. Concentrou-se e identificou um repertório de música brasileira tocado ao piano. Foram os melhores minutos da pandemia até ali. Já tinha lido diversos livros e assistido filmes sem parar, entre boas escolhas e opções terríveis, mas nada tinha lhe dado mais prazer que aqueles acordes. Não tinha com quem sequer dividir a experiência. Passou a aguardar que aquilo se repetisse. Quem seria o vizinho ou vizinha pianista? Vivia já há algum tempo no apartamento, desde o casamento, que durou pouco.
Em quinze anos no prédio, nunca tinha ouvido aquilo. Aconteceram outros incidentes musicais, como o garoto do 502 que ganhou uma bateria, um infeliz trombonista amador do 603 e, horror dos horrorres, o filho pequeno do tamborinista de escola de samba. Talvez, na pandemia, nem fossem eles tão assustadores, mas tudo acontecia em épocas de normalidade, pra desespero dos demais moradores. A Ivonete tentava ser o mais cordial possível, mas nem sempre isso era garantia de sossêgo.
Agora estava encantada com o/a vizinho/a pianista de gosto refinado pela MPB. Tocou clássicos da bossa nova, Chico, Gil, Milton, Caetano, Ivan Lins, os mineiros, João Bosco e Aldir, coisas do repertório de Elis, Gal, Bethânia, sambas de Noel, choros de Ernesto Nazareth, Pixinguinha e Jacob. Uma coisa impressionante. Além da qualidade da interpretação, um bom gosto que parecia direcionado. Ela sentia como se fosse a destinatária daquele repertório, uma serenata personalizada para ela.
Não havia a quem consultar pra ter mais informações. Não gostava do síndico e nas vezes anteriores em que telefonou pra ele, o motivo era exatamente reclamar de música alta ou mal executada, que lhe feria os ouvidos e atrapalhava o sono ou a concentração. Se perguntasse pelo pianista, o síndico provavelmente entenderia como uma nova reclamação, imaginou. Não tinha amigos ou amigas íntimas no prédio. Cumprimentava a todos com um bom dia, boa tarde, boa noite, mas não gostava de entabular conversas nos corredores e sabia da fama da vizinhança para a fofoca. Restava esperar que o pianista voltasse a dar o ar da graça. Não demorou muito. Alguns dias depois, no meio da tarde, os acordes encheram o ar de novo.
Dessa vez mais forte, como se piano e pianista estivesem ainda mais próximos dela. Correu pra desligar todos os aparelhos que emitiam ruído em casa. Precisava ouvir. Dessa vez ele misturou peças eruditas, sonatas de Bach, trechos de sinfonias de Beethoven, valsas de Strauss, peças de Villa-Lobos e jazz norteamericano com sambas, numa mistura que quase levou a Ivonete à loucura. De prazer. Daria a vida pra conhecer a pessoa que estava proporcionando aquela alegria toda a ela, num dos momentos mais tristes da sua vida, isolada em casa, sem os filhos, de saco cheio das coisas que aconteciam e que insistiam em invadir o noticiário da pior forma. As notícia terríveis vindas de Brasília, de Manaus, do mundo todo.
Mas, de repente, música de qualidade indiscutível, executada da melhor maneira, passa a entrar pelas frestas do apartamento, provocando uma reconexão deliciosa, como se nada daquilo estivesse se passando. Correu para a janela da sala e tentou localizar o som. Não conseguiu, mas sentia a força e o talento das mãos daquele ou daquela pianista sensacional. Casaria com ele ou ela ao primeiro sinal. Precisava daquela música em sua vida. Era bom demais pra não estar em sua vida sempre. Não havia playlist, cds ou MP3 que possiblitassem aquele mesmo prazer. Eram minutos de deleite puro, de sensações ineditas, tudo talvez potencializado por aqueles momentos de notícias tristes, solidão, melancolia, sensação de fim dos tempos. No final do concerto, ouviu os primeiros compassos da Quinta Sinfonia e foi às lágrimas. Chorava copiosamente, o peso da solidão incomodando como nunca, o coração ameaçando sair pela boca, a preocupação com os queridos, a raiva daqueles que adiavam decisões importantes ou desdenhavam das mortes e do sofrimento das pessoas mundo afora!
Acordou suada, sobressaltada, taquicárdica. O calor infernal de fevereiro entrava pelas paredes e o ventilador não conseguia resolver o problema. Ainda superaria aquela alergia a ar condicionado. Já eram 9 da manhã e a cama cheia de purpurina lembrava que tinha chegado tarde do encontro de carnaval com os amigos. Ainda era domingo. Quase hora de se produzir novamente pra descer para o Cordão do Boitatá. Era acordar as crianças, agora adolescentes, providenciar um café, caprichar na hidratação e no filtro solar, ajeitar as fantasias, malocar o celular e ir pro metrô. O sonho com a pandemia tinha sido assustador, mas a trilha sonora era muito boa. Trazia lembranças terríveis e sons que faziam a vida valer a pena. Mais ou menos como o carnaval.
Antes de sair, deu uma última olhada pela janela e apurou os ouvidos. Não sabe ao certo, mas teve a nítida sensação de ouvir um piano.
Por via das dúvidas, passado o carnaval, vai voltar a prestar mais atenção. Nem sabe se o/a pianista existe ou se é só uma miragem auditiva.
O carnaval dura pouco e não tem certeza se dias melhores virão, mas enquanto houver música...
Alalaô!
Rio de Janeiro, março de 2025.
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