Chapeuzinho Vermelho
O jeito como está o mundo, cujo equilíbrio, onde existe algum, parece mais tênue do que nunca, me faz lembrar uma passagem de Proust. Falando dos pobres que olhavam através da vidraça os ricos se banqueteando no restaurante do Grand Hotel em Balbec (nome que o escritor deu a Cabourg) ele primeiro observa que a vida luxuosa daqueles ricos devia ser, para aqueles que, anônimos, os observam, tão extraordinária quanto a dos peixes ou dos moluscos.
E então, Proust conclui, num de seus magníficos parênteses: “(une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protègera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardant avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger.) Tradução : (grande questão social saber se a parede de vidro sempre protegerá o banquete dos animais maravilhosos e se as pessoas obscuras que os olham avidamente na noite não virão para lhes tirar de seu aquário e os comer).
Proust vivia na época da Belle Epoque e já sentia a tenuidade da linha de limite que separa dois polos que coexistem lado a lado, em desproporcional diferença!
Hoje em dia, essa linha é muito mais frágil não só entre classes sociais, mas, com a internet, entre mentira e verdade, e com a inteligência artificial, entre ficção e realidade. Tem mais: Com o sectarismo que essa inteligência causa ao mandar para as pessoas apenas noticias positivas sobre o lado político que percebe que elas apoiam, entre fanatismo e juízo, e, finalmente, devido aos desequilíbrios ecológicos, entre a natureza e a civilização.
Falando da oposição entre essas últimas, ando me sentindo igual ao Chapeuzinho Vermelho quando levo Bowie, meu cachorro pra passear “no bosque”, quer dizer, na rua. A população dos animais parece totalmente descompensada, por exemplo, o aumento dos veados no Colorado fez com que por la reintroduzissem os lobos, que são alguns de seus predadores naturais. E desde que vim morar aqui quatro anos atrás, nunca vi tamanho problema com coiotes.
Outro dia, Bowie, e de repente até eu mesma, fomos salvos de um deles, ou talvez até de um deles e seu bando. O animal tinha atravessado a rua pela qual voltávamos pra casa e, alguns metros `a nossa frente, se colocara de tocaia numa passagem transversal a essa rua. Eu, que sou naturalmente desligada e desarmada, fiquei me perguntando se o coiote não poderia ser uma raposa e estava curiosa. Queria observá-lo, mas pensei que ele já devia estar longe.
Entretanto, um homem que passava na sua bicicleta, me alertou, dizendo que coiotes arrancam cachorros pequenos de suas próprias coleiras. Decidiu se plantar na tal passagem e começou a jogar pedras, dizendo-me que apressasse o passo. Pouco depois, veio contar que o predador estava ali esperando pra nos atacar.
Segundo o homem, aquele era dos menores, mas eles chegam a ser do tamanho de lobos. Comecei a correr, imaginando o horror de ver o meu querido cachorrinho ser devorado rente a mim, e cheguei em casa esbaforida.
Vim a saber que coiotes são tão traiçoeiros que `as vezes enviam um só deles para chamar o grupo quando este localiza alguma presa. No mesmo dia, a vizinha avisou que eu não deixasse o cachorro sair no quintal desta casa sozinho, porque há coiotes invadindo o quintal dela e facilmente viriam para o meu.
Parece que podem pular mais de dois metros de altura, e nossa cerca em comum só serve pra barrar animais pequenos. Nem de propósito, quando levei Bowie ao quintal no meio da noite (pois pra piorar a situação, ele estava com diarreia) vi pegadas de patas enormes. Nosso cão maior está no Havaí com meu filho já há uns dez dias, portanto as pegadas não poderiam ser dela. Meu Deus!
Que tal saber que predadores espertos têm acesso ao nosso próprio quintal? E no meio da madrugada, na própria “Hora do Lobo”?
Detesto ter de viver na paranoia e armada, como a maioria dos americanos vive, muitos deles já com total mania de perseguição e acreditando em toda e qualquer teoria de conspiração, mesmo naquelas que não fazem o menor sentido. Mas logo encomendei no Amazon.com dois “Pepper sprays”, que são feitos para autodefesa de mulheres, espirrando uma pimenta poderosa que cega por uns vinte minutos qualquer atacante. Alem disso, chamei o nosso mestre de obras pra que ele me dissesse como botar meu quintal `a prova de coiote. Ele me informou que alem de um cercado de dois metros de altura, devo comprar “coyote rollers” pra colocar no topo de todo esse cercado. Isso se trata de tubos de metal que giram sob as patas do coiote e o fazem cair ao invés de ultrapassar a cerca. Já com patente, eles são bem caros, aliás, mas o que fazer?
O mestre de obras também contou que numa vizinhança perto desta, o quintal de um homem que tem uma piscina beirando o limite, foi invadido por coiotes que pularam a sua cerca, caíram na tal piscina e estavam nadando dentro dela. Se o fato não fosse tao ameaçador, evocaria algum filme Disney.
Só ter de estar armada, mesmo que de spray de pimenta, muda o mundo pra mim. Mesmo que eu tentasse esquecer que carrego aquele tipo de “arma”, estaria alerta para a possibilidade de ter de usá-la. Não poder mais contar com o imprevisível em nosso caminho é receita de loucura. Ao menos para mim.
Ter que desconfiar de “golpes do vigário” em tantas mensagens digitais que nos enviam ainda é pior. Pensar em se retirar para um canto do mundo isolado disso tudo é impossível, pois esse canto não existe.
A pergunta “Onde vamos parar?” não faz jus `a tanta loucura.
Considerando os seres acuados e desconfiados que a realidade atual nos obriga a ser, é melhor perguntar “O que vamos virar?”
Comentarios