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Foto do escritorLéo Viana

CLINTON




O maior problema da vida do Clinton era a necessidade de explicar, toda vez, que o nome era uma homenagem do pai ao Clint Eastwood e não ao presidente, que se tornou personalidade mundial bem depois dos faroestes que celebrizaram o ator armamentista.

Crescera numa família repleta de Franklins, Washingtons, Wilsons, Johns e outras homenagens a americanos diversos, do cinema, da política, das guerras, da música. As festas da família sempre pareceram uma convenção partidária em época de primárias americanas ou algum dos memoráveis episódios do “Avesso da Vida”, publicado durante anos no jornal O Dia, do Rio de Janeiro, em que os personagens tinham nomes curiosíssimos.


A singular família do interior do Brasil, além dos nomes, dera aos filhos razoável conforto material e possibilidades de desenvolvimento pessoal. Clinton deixara o Mato Grosso, onde crescera tangendo gado no Pantanal, para se tornar advogado em São Paulo. Nunca superara, no entanto, apesar da assertividade necessária ao exercício da profissão, a dificuldade no trato pessoal, mais acostumado que fora à lida com os animais.

Mais de uma vez, garoto ainda, enfrentara onças ou grandes sucuris, as mais temidas ameaças aos bezerros de que cuidava na fazenda. Não se imaginava, apesar disso, em confronto direto com a defesa de culpados ostensivos, exatamente os que, não raro, melhor remuneram aos advogados.



 

Trilha sonora em homenagem ao Rio de Janeiro. Escuta essa.

 


Jamais passou sequer pela cabeça defendê-los. Isso estava fora de questão. Mesmo o simples confronto, diante do tribunal, já lhe parecia afrontoso. Conhecia o direito, fora bom aluno, tivera grandes mestres. Só não concordava com a premissa da irrestrita possibilidade de defesa. Ao menos nos casos de notória culpa.

Isso lhe rendia inimizades diversas. Havia quem o criticasse por ceder aos apelos de culpabilização proclamados pela imprensa, que determinava, a seu gosto, quem deveria ser condenado nos grandes casos que optava por divulgar. Clinton respondia, na lata, que jamais se deixara guiar pela imprensa. Nos casos que acompanhara, os indícios e provas eram colhidos in loco, normalmente sem que fossem noticiados, ou ao menos antes que se tornassem públicos.


Decidira sair da fazenda pra viver e estudar em São Paulo, apesar da timidez que lhe açoitava. Queria ter contato com mais gente, conhecer o mundo e a diversidade de pessoas e lugares que havia noutras partes, mas era o mais tímido dos irmãos e primos, o único que, até os 18 anos, nunca se afastou das redondezas da fazenda, onde manejou gado, estudou até o nível médio e leu mais livros que a maioria das pessoas de sua idade. Aos dezoito, após o alistamento e dispensa do Tiro de Guerra na cidadezinha próxima, comunicou aos pais a vontade de sair. Sabia que a família tinha um pequeno apartamento no Centro Velho de São Paulo e iria pra lá se preparar para entrar na universidade. Não tinha ainda nem ideia da carreira que gostaria de abraçar, mas desejava muito, intensamente mesmo, a experiência da cidade. Conhecia tudo de livros, alguma coisa de filmes e novelas de tv, mas queria viver de perto.


Os pais, não obstante o choque com a decisão, não interpuseram qualquer objeção. Era um filho querido como todos os outros, alguns vivendo por perto e outros já distantes, mas ninguém tão radicalmente distante do mundo rural. Havia agrônomos(as), veterinários(as), um zootecnista, uma engenheira florestal e o Clinton, tímido, indeciso e calado, até a decisão radical de se entregar a São Paulo.


Naquela época, ainda era possível ir de Campo Grande a São Paulo de trem. E foi assim que Clinton chegou, depois de muitas horas de assentos desconfortáveis, à Estação da Luz. Mapinha na mão, andou dali até a Praça da República, pelas avenidas Duque de Caxias e São João. Nunca vira tanta gente de uma vez, tanto prédio, tanto carro, tanto barulho. Mas aquilo lhe fez um estranho bem. Também pela primeira vez estava cercado de gente que não conhecia, tinha a chance de não precisar agradar a ninguém, de ser o que quisesse. De qualquer forma, era só o começo. Não podia pensar tão longe ainda. Voltou um pouco, o apartamento ficava no Largo do Arouche. Foi amor à primeira vista.




 

MPB em alta! Escute a playlist no Youtube.

 


Muita coisa aconteceu. Da surpresa com os travestis, nas primeiras noites em que desceu pra comer nos arredores, ao choque com as primeiras viagens de metrô. Da descoberta do Bixiga, e da multidão de jovens que se reunia ali nos anos 80, aos punks das revistas do Angeli, agora em pessoa e não mais em quadrinhos preto e branco.


A família se preocupava, mas Clinton tranquilizava a todos e dizia que estava tudo bem com ele. Tinha tudo de que precisava, cama quentinha e uma inteligência privilegiada que lhe permitiu garantir uma vaga no Largo de São Francisco, na mitológica Escola de Direito da USP. Mas o que lhe atraía eram as noites, os personagens da noite, as dragqueens, os travestis, a prostituição. Não era um “cliente”, mas achava que aquela gente era muito mais interessante que as pessoas do dia, dos horários em que circulava arrumadinho, com cara de estudante de Direito, de estagiário do Ministério Público, de jovem bem sucedido na desigual e competitiva sociedade paulistana.


Levou o curso até o final, sempre dedicando ao menos duas noites por semana a seu público preferido. Já era conhecido nas esquinas do entorno da Praça da República e da Avenida São João. Vestido discretamente, conversava com todos, bebia alguma coisa, ajudava a um ou outro, a uma ou outra, mas sem envolvimento sexual.

As namoradas não entendiam e o consideravam um sátiro excêntrico. Algumas tentaram acompanhá-lo, mas nenhuma deu conta da importância que ele dava a seus rolés noturnos. A família, após tantos anos, segue sem saber.


Em 2018, já com muitos anos de banca, sem muitas sustentações orais (a tal timidez...), mas consagrado como o melhor redator de petições, agravos, recursos e instruções em geral, fazia o seu passeio noturno nos arredores da Avenida Paulista. A concentração de garotos gays em alguns quarteirões da Frei Caneca tinha se tornado um de seus destinos preferidos.


Quando a “tropa dos bons costumes” chegou, ele estava bebendo um café com pão de queijo em uma padaria da região. Já tinha ouvido falar e até atuado em casos de homofobia, inclusive alguns com desfecho trágico, mas curiosamente, em sua vida pessoal pouco convencional, nunca estivera de frente de frente com o problema. A gritaria começou de repente e assustou a quem estava no balcão da padoca. Ao chegar à calçada, atraído pelo escarcéu, Clinton deu de cara com a massa disforme de gente brigando, que misturava garotos gays musculosos sem camisa, garotos conservadores fortes e musculosos com camisa, mulheres histericamente conservadoras, meninas de piercing, homens de terno com bíblias na mão e algumas camisas da CBF.


Pouco ou nada valia, em plena confusão, o título de Promotor de Justiça ou a experiência adquirida em anos de atividade jurídica. O pau comia e era necessária alguma atuação mais forte e incisiva. Brandir a carteira do Ministério Público não seria suficiente pra fazer parar a pancadaria misturada com gritos pela moral, apelos religiosos e invocações de intervenção militar (??). Nenhuma viatura da polícia à vista. Ligar para o 190 talvez fosse a única coisa a fazer. Fez. Ouviu um tiro enquanto gritava ao celular. Um “pastor”, sentindo-se ameaçado, sacou uma arma e atirou para o alto. Isso fez mais efeito que qualquer telefonema, a polícia apareceu logo.


Três viaturas surgiram como por encanto, com o pequeno grupamento comandado por uma oficial. Os agressores tentaram fugir, mas foram detidos em massa. A oficial de polícia identificou lutadores de jiu-jitsu, donas de casa, pastores, militares e outros tipos entre os ditos “conservadores”. Dentre os agredidos, havia muitos estudantes, mas também profissionais liberais diversos, atletas, artistas. Era a sociedade se agredindo, em nome de uma moral duvidosa. Ainda entre os conservadores, sonegadores de impostos, portes ilegais de arma, estelionatários, acusados de extorsão. Da parte dos agredidos, dois com passagem por porte de drogas para uso pessoal. Sem crimes.


Clinton não se identificou. Seguiu acompanhando a dispersão da confusão, a atuação surpreendentemente exemplar da polícia. Enquanto anonimamente ajudava aos feridos, refletia sobre a complexidade de uma sociedade que naquele mesmo 2018 fizera a opção pela barbárie, dando poder e entregando o Estado brasileiro àquela gente agressiva que discriminava o que era diferente.

Continuaria fazendo a sua parte, advogando em favor da sociedade diversa e ordeira mas, por via das dúvidas, aposentaria camisas da CBF, quaisquer referências, mesmo periféricas, ao número 17 e - incentivado pelas circunstâncias - criaria, finalmente, um alter ego drag queen. Por que não?


Há algum tempo vinha estudando os repertórios femininos do Chico Buarque e do Aldir Blanc.


A única dúvida que ainda o atormentava era o nome que daria à sua drag. Hillary ou Monica?

Rio, agosto de 2021


 

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