CONFRONTADO COM A REALIDADE
Uso o VLT quando preciso me deslocar, em média distância, no centro da cidade. Especialmente quando chove ou está um calor muito forte. Quando é perto e o tempo ajuda, vou a pé. Aguardando o trem do VLT na estação da Av. Rio Branco, em frente a Cinelândia, no horário do almoço, sinto a aproximação de uma senhora, entre 60 e 70 anos, uma figura castigada pelo tempo e, talvez, por frustrações de sonhos de vida, o que pode agravar o efeito da ação do passar dos anos sobre a saúde e aparência.
Eu estava com meu uniforme de trabalho. Sou advogado. Usava paletó e gravata. Talvez por isto, a senhora se dirigiu a mim e não as outras pessoas que me rodeavam. Muita gente associa o uso do paletó e gravata à elegância e fortuna, o que, definitivamente, não é uma verdade definitiva. De todo modo, a pedinte, com um olhar cansado, que transparecia um pouco de loucura, próprio das almas em desespero, disse-me, sem se preocupar em ser amena:
-Oi! Você! Estou com muita fome. Me dá dinheiro para almoçar.
Caro leitor, não esqueci a interrogação ao final da frase. A senhora voltou-se em minha direção, sem qualquer humildade - como ordinariamente faz quem pede esmola ou qualquer coisa -, não para fazer uma súplica, mas sim, para me dar um comando. Uma ordem.
Naquele momento, à vista do tom hostil da requisição, confesso, hesitei. Moro no Rio de Janeiro. Não é preciso dizer mais… em um primeiro momento, falou mais alto meu instinto de autodefesa. Olhei para os lados para ver quem estava. Acho até que olhei para trás também. Será que é um assalto? Alguém estaria dando apoio a ação da senhora? Sem ver nada indicativo de roubo, passei a pensar em golpe!
Qual seria a estratégia? Qual o próximo passo da golpista? Tudo acontecendo muito rápido, no intervalo entre a primeira e a segunda frase da senhora que logo emendou, sem me dar tempo de resposta:
- Você não vai me dizer que não tem dinheiro para me dar?
Neste momento, já me sentia mais seguro para responder, sem qualquer vontade de iniciar uma conversa com uma senhora grosseira, que não conheço, falando comigo como se fosse um cachorro vira lata. Não o fiz, contudo, com palavras.
Eu não uso mais carteira. Apenas meu celular. Cartão de crédito, carteira de identidade, motorista etc, tudo, no meu i-phone. Mantenho o hábito apenas de ter em mão dinheiro físico. Todo o mais, digital. Quando visto paletó, o dinheiro físico fica no bolso de fora. Pois bem! Meti a mão no bolso para pegar algum valor para entregar para a amargurada senhora. Tomei o risco. Não havia certeza se seria um roubo ou um golpe, mas ainda assim, decidi, na dúvida, ajudar, aquela pobre mulher. Falou mais alto a caridade.
Eu guardo dinheiro físico em notas grandes e pequenas: 100, 50,20, 10, 5 e até 2 reais. Com a mão procurava achar a medida certa da esmola a ser dada. 100 seriam muito. 50 também. 20 seriam talvez o ideal, com 20 reais, acho que uma pessoa na condição social da senhora pedinte poderia se alimentar com dignidade. Apalpei uma nota, que pela posição no bolo de dinheiro, poderia ser de 20 reais.
Quando estendi a mão para aquela sofrida senhora, logo vi que não eram 20 reais. Olhando, com desdém, disse-me a pedinte:
- Só! Não vai fazer falta?
Com um olhar agora até mesmo raivoso, cheio de indignação, ainda complementou, para um doador que franzia a testa, meditando, refletindo sobre a melhor forma de se livrar da constrangedora situação que se encontrava:
- Você consegue almoçar com R$ 10! Quanto custa o almoço no restaurante que você almoça? Essa miséria?
Recapitulando, em resumo: estou na Av. Rio Branco, em frente a Cinelândia, com uma pedinte, cada vez mais hostil, que não sei bem quem é, exigindo dinheiro. Riscos envolvido: assalto, golpe, agressão e, o menor deles, o constrangimento.
Mas há uma outra questão. A vida sorriu para mim. Tenho uma condição financeira confortável. Procuro, da maneira que posso, ajudar as pessoas. Especialmente meus parentes. Pratico a caridade, através de ações e doações em dinheiro para instituições. Sinto o dever de dar retribuição à sociedade. Devolver, pelo menos em parte, aquilo que consegui conquistar.
Andrew Carnegie, um dos homens mais ricos da história americana e de toda a humanidade, em seu “Evangelho da Riqueza” (The Gospel of Wealth) pregava que os ricos têm a responsabilidade de administrar sua riqueza de modo a beneficiar a sociedade, através de investimentos em instituições que ajudem as pessoas a se autosustentarem, como biblioteca, escolas, universidades e entidades do gênero. E ele não só escreveu. Quase toda a sua fortuna – estima-se mais de 90% - foi destinada a este propósito durante sua vida e após seu falecimento. Carnegie era contra deixar herança.
Mesmo não tendo como comparar a riqueza de Carnegie com o que amealhei de patrimônio ao longo da minha vida, em relação à população brasileira e especialmente aquele pobre mulher, via-me, no contexto deste peculiar episódio que vivi recentemente, na posição dos ricos. Tenho a convicção que é meu dever moral ajudar aqueles que necessitam de auxílio, que não tem onde morar, o que comer, em especial.
Uma ressalva: o mesmo Carnegie que pregou e praticou a caridade em uma dimensão talvez nunca antes vista em sua época, na mesma obra, se manifestava contra a esmola. Ele acreditava que simplesmente distribuir dinheiro, por meio de esmolas, não resolvia o problema da pobreza. Ao contrário. Contribuía para sua perpetuação. Conheço muita gente que pensa assim, seja por verdadeiramente acreditar neste dogma, seja por pão-durismo mesmo.
Eu, embora reconheça mérito nesta ideia, não consigo concordar com sua prática. Parece-me utópico pensar que ao não dar uns trocados a um pedinte, contribuiremos para melhoria da sociedade. Há um deficit social abissal, notadamente no Brasil. As entidades públicas ou privadas não têm, historicamente, dado conta de suprir as necessidades dos mais pobres.
Ainda há fome no país!!
Sou coração mole, emotivo, o que contribui para formar minha opinião sobre o tema. Ajudo. Dou esmola. E às vezes vou longe: auxílio mesmo quem tenta me enganar ou, como no caso da senhora amargurada, sofrida, próxima da loucura que me abordou de forma hostil, quando, a meu critério, meu exclusivo critério, percebo que a pessoa passa por necessidade e precisa de um gesto, por menor que seja, que lhe dê esperança ou, ao menos, satisfaça apenas aquela fome momentânea.
Uma obra que li e me encantou, por todas as suas lições de vida, de humanidade foi “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Um personagem que verdadeiramente me inspira, nestas horas, é o Monsenhor Bienvenu. Para quem não teve o prazer de ler este livro, Jean Valjean, o protagonista da história, ao sair da cadeia sob o estigma de ex-presidiário, não conseguia emprego. Não tinha como pagar sua própria comida, nem lugar para morar. Tendo ouvido falar da bondade do bispo de Myriel, bateu a sua porta. Monsenhor Bienvenu o acolheu, deu-lhe comida e um lugar para dormir. Uma alma desesperada, desesperançosa, Jean Valjean, apesar de bem acolhido, fixou sua atenção em dois candelabros de prata que avultavam de um móvel na casa. Quando todos dormiam, o protagonista furtou os candelabros. Fugiu, em seguida, na calada da noite. O destino, contudo, o levou a ser novamente preso por policiais que por acaso passavam por perto.
Levado a presença de Monsenhor Bienvenu, os guardas foram surpreendidos com a confirmação pelo bispo da versão que Jean Valjean contara: as peças de prata haviam sido doadas a ele. O protagonista também ouviu incrédula sua mentira ser confirmada como verdade pelo caridoso clérigo. A atitude de Monsenhor Bienvenu, diante de um ex-presidiário, mentiroso, que o havia traído e roubado, transformou a vida de Jean Valjean. Transformou-o em um grande benfeitor. Sugiro ao estimado leitor, a leitura completa desta obra prima, de um dos maiores escritores de todos os tempos.
Todas estas ideias não me passaram pela cabeça na hora. São reflexões que já havia tido, em meus debates interiores, comigo mesmo, que muitas vezes tiram meu sossego. Eu já tinha opinião formada. Por esta razão, minha reação ao desaforo daquela alma sofrida não foi rechaçá-la. Pus, mais uma vez a mão no bolso, peguei uma outra nota, e, ainda sem dizer uma palavra, inconscientemente me espelhado no exemplo de Monsenhor Bienvenu, e me afastando dos conselhos de Carnegie, entreguei-a a pedinte.
- R$ 20??? É só isto mesmo?
Neste momento se aproximava o trem. Um pouco irritado, com certeza não tenho a tolerância e a bondade sem limites do Bispo de Myriel, me afastei da pobre senhora em direção ao vagão, que me apressei a entrar, dizendo a ela apenas:
- R$ 30 são suficientes para senhora comer…
Não houve assalto, golpe e nada de mais grave. Senti, embora tenha dado, penso, o suficiente para aquela senhora almoçar dignamente, um grande mal-estar. Ao sentar-me, dentro do vagão, fiquei só, confrontado por uma realidade social perversa, em que R$ 30 podem ser muito para uns almoçarem e pouco para outros, como eu, que vivo em uma realidade bem diferente.
Não respondi aquela senhora, naquele momento, entendia o porquê: apesar dos modos, que toda uma condição de miserabilidade pode explicar, ela tinha razão em um ponto: não almoço por R$ 30…
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