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Conto do Vigário

Foto do escritor: Eleonora DuvivierEleonora Duvivier


 

   Andava querendo fazer uma tese aproximando Kant e Proust, e os contrastando. Relendo a Crítica da Razão Pura depois de muitos anos, algo a que nunca tinha prestado a devida atenção me pareceu urgente.


  Vou tentar resumir a estória porque este artigo não é tese, mas sim a introdução ao “Conto do Vigário”, do qual ainda estou me recuperando. Por isso, vou tentar aproximar o jargão filosófico de Kant a termos mais triviais.


   Kant analisa a mente universal de modo funcionalista, quer dizer, através do papel que ela tem na maneira como experimentamos o mundo e adquirimos conhecimentos científicos. O mergulho mais genial de Kant na Crítica da Razão Pura, e que teve grande impacto na filosofia, foi ele perceber não só que os elementos racionais que moldam a nossa experiencia do mundo são inatos e universais, mas que já começam por organizar a nossa percepção imediata das coisas.


Antes que possamos fazer qualquer julgamento e usar conceitos para o que vemos de imediato, o que Kant chama de “formas” do tempo e do espaço, inatas, universais, e racionais, em nossa mente, já organizam a multiplicidade do que é externo a nós no espaço, e no tempo, em que internamente ocorrem as nossas “representações” do que vemos e de nós mesmos. Eu diria que “formas” são como moldes vazios, prontos a se especificar na experiencia que rolar.


   Querendo dar o caráter de universalidade e necessidade ao conhecimento científico, Kant mostrou que este é em parte construído pela razão e não resulta, portanto, de meras associações contingentes que vêm de nossa experiencia ou observação empírica. Kant conseguiu demonstrar o grande papel do elemento racional, inato, e a priori em nossa mente. Por isso, ele afirma que o tempo e o espaço não são atributos das coisas em si, mas vêm de nós, como sendo as tais “formas” racionais que organizam de imediato o mundo ao nosso redor e os nossos pensamentos dentro de nós.


    Quanto à realidade última, ou os objetos “em si”, (Noumena) não podemos conhecê-los. O máximo que Kant fala do “noumenon” é que este é primeiramente um conceito negativo para limitar as “pretensões” de nossa percepção sensorial. Essas pretensões estariam ligadas a nos fazer pensar que nossos sentidos nos mostram o “objeto em si”, ao qual ele se refere como sendo o objeto da percepção divina. O pouco que diz sobre isso é que, em Deus, o pensamento deste objeto e a sua criação coincidem. O noumenon é então objeto pensado ao mesmo tempo que criado por Deus; a verdade última.


   Com o inacessível noumenon, Kant quis isolar a realidade espiritual e religiosa (na qual acreditava) da ciência e das especulações racionais, e diz: “Tenho que acabar com o conhecimento para dar lugar a fé”. Ele já tinha percebido, contrariamente à sua tradição racionalista, que a razão pura (a que não precisa da experiência) não prova verdades metafisicas, as quais ele desconstrói e mostra que não são válidas, como as famosas provas racionais da existência de Deus. Mas no campo do mundo físico, ele mostra que a razão provê o caráter de necessidade e universalidade ao que conhecemos deste mundo porque ela mesma é o que constrói nosso conhecimento dele. Kant chama de transcendental os diferentes aspectos de como ela se manifesta em cada uma das funções com que articula a nossa expêriencia deste mundo, enquanto chama o noumenon de transcendente.


   A causa que Kant atribui a estarmos distantes do divino, ou do transcendente, é a nossa percepção sensorial, que limita o que percebemos, inclusive nós mesmos em nossa autoconsciência, no tempo e no espaço: a nossa finitude.  Por outro lado, as funções racionais que estruturam o mundo tal qual o vemos, como as formas do tempo e do espaço, a conceitualização e os julgamentos lógicos, ele chama de transcendentais.


A dimensão transcendental esta aquém do transcendente, mas reside além da experiência ou do mundo factual, cuja possibilidade depende dela. A experiência começa com os nossos sentidos e se estrutura através das categorias transcendentais do julgamento lógico. O papel dos elementos transcendentais da razão é mais elevado e obviamente mais intelectual do que o de nossos sentidos, embora, no tocante ao nosso conhecimento do mundo, eles sejam interdependentes. Naturalmente, a restrição kantiana para o elemento sensorial corresponde à velha cisão entre matéria e espírito, ou matéria e mente, que foi exacerbada com os racionalistas.

 

   Proust, por outro lado, deu ao elemento sensível e físico supremacia ao intelecto enquanto caminho para a experiência mística que ele teve em suas epifanias. Demonstrou que justamente através das sensações, e não do intelecto, ele saiu do tempo. Sem que menos esperasse, essas sensações que eram comuns ao passado e recorreram no presente por obra do acaso, juntaram aquele passado distante a esse presente e se tornaram momentos atemporais.


    Quando Proust as experimentou, elas estavam totalmente livres da organização racional kantiana no espaço e no tempo, pois não eram percepções de algum objeto, e sim da própria alma de Proust. Não foram requisitadas por nenhuma busca intelectual, e sim dadas pela vida. Nesse sentido, é o elemento sensorial que se torna transcendente.


   Se a fisicalidade tem esse poder, quem somos nos para afirmar que ela não pode existir no nível transcendente?


    E ao invés de ser ela a marca de nossa finitude, essa marca viria da nossa racionalidade, desse transcendental que limita o que percebemos no espaço e no tempo.


    Quem somos nós para saber se a fisicalidade existe na dimensão transcendente, uma vez livre da razão? Por que ousaríamos declarar que a matéria não transcende, quando liberta da organização das formas racionais espaço temporais? Quem sabe essa matéria livre seria pura intensidade? Acredito.


    Quando tomamos alguma substância que altera nossa noção de tempo e espaço, o que vemos aparece novo, livre e transcendente. Trata-se da famosa “visão sacramental” da realidade descrita por Aldous Huxley como efeito da mescalina. Por isso, eu considero a racionalidade (o “transcendental” kantiano) a qual está acima do mundo, mas abaixo do divino, como a própria queda do paraíso. Não é à toa que os místicos de várias tradições descreveram a união com Deus em termos amorosos e sensuais. O amor é a forma mais alta de inteligência, e a razão é a queda do Amor.

  

    Para desenvolver minha ideia, procurei online tutores que me orientassem. Dei logo de cara com um tal de Varsity, que afirma ter pessoas instruidas em absolutamente tudo. A mulher com quem falei, pediu que eu lhe descrevesse minha ideia e me cobriu de elogios.


   “Mas você tem algum tutor que saiba Proust?” perguntei, consciente de que neste país, quem sabe alguma coisa séria de Proust tem que aprender em universidades, que aliás são poucas nesse assunto, e, em geral, em cursos ligados `a língua francesa.

   “Claro! Temos tutores preparados em tudo!” a mulher respondeu. “Vou te arranjar um enquanto você faz a inscrição.


    A custa de elogiar a minha ideia e conhecimento, ela conseguiu me manter no telefone até eu pagar 4 sessões com o tal tutor. Aí, me ocorreu lhe perguntar se uma tese completa me daria algum tipo de credencial. Vaidade é mesmo fogo. Isso deveria ter sido a minha primeira pergunta, interrompendo os elogios da mulher. Esses “vigários” têm uma técnica de fisgar clientes desarmados e inocentes.


   A mulher respondeu que não davam credencial ou reconhecimento algum para uma tese, nem que bem-feita.


   O próximo passo foi ver online a tutora que a mulher me arranjou. Era uma garota que não parecia ter mais de dezoito anos, e sabe-se lá se já tivera tempo de completar o colegial. No site deles, ela me perguntou sobre o que eu iria querer falar com ela na nossa primeira sessão. Claro! Queria ter tempo de consultar a inteligência artificial.


Respondi que isso surgiria no decorrer de nossa conversa, e o passo seguinte foi ela desistir de mim. Que alívio!


   Mas tive que passar o resto do dia reclamando com o Varsity e exigindo que alterassem a minha “subscription” para que as cobranças não se renovassem. Quanto ao resto, na baixa da minha crista e autoestima, troquei aquelas sessões que já tinham sido pagas por aulas remotas de computador e iPhone. E não tenho o menor saco pra esse assunto, diga-se de passagem!


 


Cedro Rosa: O mundo da música esta aqui.



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