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Foto do escritorEleonora Duvivier

Corpus Christi



Meu sonho era segurar uma nuvem. Antes de mamãe embarcar com papai para a Europa, pedi-lhe que através da janela do seu avião me alcançasse uma daquelas branquinhas e macias que se destacam no azul do céu em dias de sol. Ficava imaginando como seria a textura da nuvenzinha e lembrava do gosto e aparência do marshmallow, que eu achava uma delícia sobrenatural. Mas o grude do marshmallow não me parecia celeste e estava contido numa jarra ao invés de flutuar no céu, e me lembrar disso só fazia aumentar a minha fascinação com as nuvens. Mamãe sorriu quando lhe pedi a nuvenzinha, e como sempre respeitava a imaginação das crianças, deixou intacta a minha esperança de um dia ganhar aquela pureza que morava no azul.


Na preparação para nossa primeira confissão, a freira disse que nossa alma ia ficar branquinha depois que fizéssemos a penitência que o padre nos daria. Então, imaginei a minha alma como uma extensão etérea, macia e clara dentro de mim e que só poderia ser a nuvenzinha que ali se instalaria.


Vovó não ia `a missa aos domingos e dizia que esse era o seu único pecado, mas que Deus sabia da condição cardíaca perigosa que tinha e a entenderia. Morando com ela enquanto meus pais estavam fora, eu era uma extensão da rotina que determinara pra mim ao invés de alguém que podia decidir o que queria e falar por si mesma. Não tinha então a audácia de lhe pedir que me enviasse `a igreja com a babá. Sentia também que isso a botaria contra a parede, pois ela própria não parecia muito convencida quando dizia que Deus a entenderia. Dizia isso dando um sorriso que convidava quem a ouvisse a confirmar o entendimento divino que ela esperava, mas isso nunca acontecia.


Esperando minha vez de confessar, tentava arranjar um jeito vago de contar ao padre o pecado crônico que eu tinha por também não ir `a missa aos domingos, e não sabia como. Não podia mentir que só não tinha ido uma vez, mas ao mesmo tempo não tinha coragem de confessar que nunca comparecia na igreja aos domingos. Então, quando ele me perguntou quantos domingos faltei, respondi “Uns três”.


“Como? Por quê?” ele perguntou zangado.


“Porque minha avó esta doente e não pode me levar”, respondi envergonhada.

“Mas você não precisa ir só com a sua avó” o padre inclemente concluiu. “Isso é uma desculpa. Reze dez Ave Maria e dez Padre Nosso e não falte mais a missa no domingo!” decretou rabugento.


Rezei minhas vinte orações sabendo que não mais iria confessar, pois continuaria sem pedir `a vovó que me enviasse `a igreja. Minha primeira comunhão seria no domingo daquela mesma semana, antes que eu pudesse cometer o mesmo pecado de novo. Até lá, eu teria a alma-nuvenzinha toda branquinha dentro de mim.


Para minha sorte, o que eu teria que vestir nessa ocasião tão esperada tinha que ser comprado na escola, e desde que só haveria uma primeira comunhão, vovó não viu sentido em comprar o meu vestido pra cerimonia dois tamanhos maiores do que o meu. Eu, entretanto, sabia, como Cinderela no baile, que nas semanas seguintes, voltaria a ser inadequada e, sem nem poder me confessar ao padre, indigna. No grande dia, vovó também sabia que teria que presenciar o evento com outros parentes, assim como fariam as famílias de minhas colegas. Senti-me jubilante por estar como todas elas, devidamente preparada para receber o mais importante sacramento naquele dia especial e único em nossa vida. A escola fez determinado número de convites para as famílias de cada uma de nós anunciando o evento, dia e lugar, imprimidos em dourado, deixando um espaço em branco em que nosso nome individual seria escrito. Mas as freiras também nos animaram a pagar extra para que o colégio imprimisse no verso de nossos santinhos: Lembrança da Primeira Comunhão de... realizada na igreja do Sacré Coeur de Jesus etc. Mas com essa despesa extra eu sabia que não poderia contar.


Um mês antes do evento, minhas colegas começaram a exibir seus santinhos coloridos e impressos pela escola, para competir pelos mais bonitos. Os de algumas tinham as bordas douradas e suas imagens coloridas eram embelezadas por raios de luz `a volta de Jesus e halos dourados sobre a sua cabeça. Os de outras tinham efeitos dourados mas bordas brancas, e uma minoria os tinha somente em cores e nenhum dourado. Os meus não tinham nem cores nem efeitos de ouro, mas o que mais me envergonhava neles era o seu verso ser escrito a mão por vovó ao invés de impresso pela escola. Sua frente mostrava a reprodução de um desenho monocromático do rosto de Cristo por Leonardo Da Vinci, que para mim não tinha o glamour que eu via naqueles de minhas colegas. Mamãe os enviara da Itália, e sabendo por vovó que eu reclamei por não terem cor, me escreveu uma carta dizendo que eles eram muito superiores aos delas pois que reproduziam a obra de um grande artista. Isso, porém, não me deu a menor convicção da sua superioridade e eu nem os mostrei `as outras.


Semanas depois, quando eu além de não confessar não ousava pedir para dispensar o café da manhã e manter o jejum matinal que as freiras diziam ser necessário para a comunhão, continuava a admirar a esperada elevação da hóstia consagrada como uma eterna primeira vez. A infalibilidade da sua redondeza, a impecabilidade do seu branco, e a perfeição de uma inteireza a que nada se podia adicionar e nada retirar a tornavam exclusiva. Na sua luz, a hóstia erguida a Deus reinava dentro da igreja, tornando tudo `a sua volta indistinto, contingente e inconsequente. Até mesmo os meus pecados. Com tristeza, eu olhava as meninas que saiam de seus lugares em direção `a comunhão, aquelas sortudas que podiam fazer tudo certo e que tinham a alma branquinha e o estomago vazio que ninguém podia ver a não ser Jesus e o seu Pai. Eu também devia segui-las e não podia. Quando muitas começavam a voltar, vi que a comunhão seria concluída em breve e senti ser maior pecado não ir ao encontro da hóstia do que recebê-la sem ter as condições que nos foram doutrinadas. Ninguém na igreja poderia adivinhar que eu tinha tomado Ovomaltine de manhã, que eu não tinha confessado, e que não havia comparecido a missa em todos os domingos depois da primeira comunhão. Continuava a me dizer em pensamento que ninguém podia ver dentro de mim a não ser Jesus e o seu Pai no céu. Juntei-me à fila, pedindo a eles dois que me perdoassem. Meu pecado era por Jesus e para Jesus. Enquanto caminhava ia suplicando o perdão celeste para poder tê-lo dentro de mim pecando e contra todo aquele colégio. Quando a imagem do padre e da freira se encarando nus começou a invadir minha cabeça, minhas súplicas se repetiram sem trégua, alternando-se com tentativas de rejeição ao que via em pensamento a despeito da minha vontade, “não” e “não”, gritava mentalmente cada vez que a cena indecente reaparecia, “perdoai-me Jesus, perdoai... não e NAO! Deus me perdoe, Jesus...”


Eu que era ruim por causa dos meus pensamentos, por nem jejuar e nem confessar, por fazer minha avó chorar quando via meu boletim e por deixar ela me comprar três sapatos errados e gastar dinheiro. Mas a imagem da hóstia dissipou a autoridade da condição dolorosa de vovó, as humilhações a que a freira me submetia, a vergonha das minhas notas ruins e as regras religiosas que nos ensinaram. Tornou-me capaz de me dar a mim mesma o meu próprio acesso a Jesus e acreditar que ele e Deus me perdoariam. Tendo sido até então um conflito ambulante entre os caprichos de vovó e o rigor das freiras, eu, que não conseguia satisfazer nenhum desses polos opostos, me tornei alguém ao poder obedecer a minha própria vontade e fazer a minha comunhão fosse o que fosse.


Ajoelhei-me e dali a pouco o sacristão já estava segurando a bandejinha dourada sob o queixo da menina ao meu lado. A freira tinha ensinado que não se pode mastigar a hóstia, mas ninguém iria querer mastigar aquela rodinha tão lisa e fofa que nunca se desviava de si mesma, que nunca errava e que era muito perfeita para ser dispensada. Eu iria recebê-la contra o padre confessor, que tinha zangado comigo, contra vovó, a quem eu não podia pedir que me levasse `a igreja, e contra o colégio inteiro, que pensava igual ao padre. Queria para mim o que era mais lindo no Sagrado Coração, mesmo achando que o meu comportamento não estava certo. Mas Jesus era muito lindo pra ficar na bagunça de certo e errado, eles que fossem pro inferno junto com a imagem indecente do padre e da freira. Eu ia receber a redondeza tão igualzinha que não tinha nem começo e nem fim, o “sempre” que era o corpo de Cristo. Minha vontade de me tornar digna dele virou uma lei a despeito de tudo. Elegi-me digna de Cristo contra a doutrina católica que tinha aprendido e construí minha fé através do meu próprio pecado.


Na igreja do colégio, a hóstia chegou diante de mim.

“Corpus Christi” disse o padre.

“Amem”

E assim concluiu-se o Sagrado Coração. Fiquei com Cristo e comigo mesma.


 

Arte, Cultura, Cidadania.


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