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Foto do escritorDoris Couto

Criatividade em museus não significa renunciar à aura do objeto


Doris Couto, Diretora do Museu Julio de Castilhos ( RS) - Mestra em Museologia e Patrimônio.

A criatividade habita o humano que há em cada um e na soma do conjunto das pessoas que fazem os museus acontecerem, pode ser um dispositivo dos mais interessantes para que tais instituições atraiam públicos diversos e em especial a infância e a juventude.


Mas é preciso advertir que ser criativo dá trabalho, requer elaboração conceitual, estudo de recepção de ideias, lógica operacional, algum orçamento e muita disposição.


Criar soluções é da vida, e nas instituições museais não é diferente: muitas vezes um simples painel numa parede antes desnuda, aportando possibilidades de apresentar uma obra, um texto, uma provocação – muda a cara de uma sala e a faz amigável. Sim, um museu precisa ser acolhedor. Deve abraçar seu público e acima de tudo deve promover adequadamente a mediação entre seus objetos e obras e os visitantes.


Gerar interrogações, fazer com que o público queira saber mais, não significa, em absoluto, abordá-lo por meio de enigmas ou de conteúdo textual cujo significado represente estar conectado ao Google ou carregar consigo um dicionário. Também não significa que devamos ser simplórios, apenas sejamos simples.


Música sobre Sustentabilidade. Ouça nesta playlist da Spotify.


De acordo com Klausen (2010, p.349) novidade e criatividade não são a mesma coisa. O autor chama a atenção sobre a criatividade se vincular a um “determinado processo” que gera “qualidade peculiar do trabalho que resulta” em novidade. Ele alerta ainda que a criatividade deve romper com práticas, fazer algo inesperado.


Contudo não devemos entender a aplicação de processos criativos nos museus como um esforço de povoamento multimídia ou a produção de instalações mirabolantes que se sobreponha ao acervo da instituição, razão principal de sua existência.


Criatividade, conteúdos digitais e app


A cultura de massa que chega ao campo da memória e das instituições de cultura, de modo geral, pugna pela inovação e pela criação de conteúdos digitais e outras formas de tecnologia para dotar o espaço do “velho” de ares contemporâneos. Paira no ar o dever da adoção de aparatos tecnológicos.


A ânsia pelo novo pode levar a alguns equívocos, tais como: sobrepor a tecnologia à aura da obra ou do objeto – estes dotados de uma carga simbólica iniciada na sua produção e potencializada pelo contexto de uso; ofertar mecanismos sem ter equipe disponível para auxiliar as pessoas não habituadas com a tecnologia; uso de aplicativos que demandam acesso à internet sem que o museu a disponibilize gratuitamente; adoção de equipamentos cuja manutenção não está assegurada no orçamento da instituição; desenvolvimento de conteúdo para públicos segmentados, desconsiderando que a comunicação museal deve ser dirigida a todas as pessoas.


Não há que se fazer a demonização das telas, dos aplicativos, dos vídeos, do conteúdo narrado etc., mas é importante saber seu alcance.

Em que pese os possíveis escorregões que se pode encontrar em alguns museus, o papel da curadoria é a correta dosagem do aporte de tecnologia nas exposições dos museus e o acompanhamento das iniciativas implementadas para medir o impacto de seus usos, preferencialmente por meio de estudos de público, ainda raros, infelizmente.


Mas, onde mora a criatividade no museu?


Eu diria que nos detalhes, na amorosidade com que se prepara cada ação para que seja especial e gere a experiência do visitante, aqui entendida como o atravessamento proposto por Larrosa (2010, p.20-24), onde a experiência é elaborada por aquele que a vive para além do momento em que ela acontece e se converte em reelaboração de sentidos, de pensamento, algo inesquecível.


A criatividade pode aflorar na produção de soluções expográficas de modo a tornar a apresentação de uma peça do acervo atraente, destacada. Neste sentido vivi um exemplo simples com resultado muito bacana na montagem de uma exposição de artefatos indígenas, mais especificamente, de pontas de flechas em distintos materiais, que seriam apresentados em um cubo preto com cúpula de vidro. Ao dispor as peças sobre o cubo, elas desapareceram, ficaram sem expressão. A alternativa adotada foi cortar sobras de vidro quebrado e construir mesinhas em três níveis diferentes, adesivadas com papel preto. Ali se produziu uma alternativa muito simples cujo resultado foi a aproximação dos pequenos artefatos do olhar do visitante.


Na mesma exposição havia um problema estético na sala: o piso em madeira laminada havia sido encharcado por uma infiltração d’água e se desfazia sob os pés dos passeantes. Depositou-se folhas secas que havia em abundância nos jardins e o resultado foi um espaço com cheiro de mata. Observei visitantes tirando os calçados para ter a sensação de caminhar sobre as folhas. Sons de pássaros completaram aquela experiência. Creio que a maioria dos visitantes nunca soube que aquela foi uma solução quase desesperada para que o lugar ficasse à altura do que ali era apresentado.



 

Veja esse videoclipe gravado na Cidade do México. Música do gaucho Rapha Rosa,

gravada pelo violinista da Geórgia, radicado na Espanha, Nika B. Lançamento Cedro Rosa.

 


Na cidade do México, hesitei muito até entrar no Museu da Economia: foi uma surpresa deliciosa. Os fundamentos da formação de preços das mercadorias foram trazidas ao público de um modo muito lúdico, com uma esteira no alto da parede com vários produtos que chegavam a uma mesa onde sua cadeia produtiva era esmiuçada de forma muito simples, atribuindo-lhe um valor final.


Noutro espaço o consumo de famílias de diversos estratos sociais era discutido com uma foto do seu café da manhã: ali as famílias americanas apareciam com suas enormes caixas de cereais, frutas e leite, café, waffle e pasta de amendoim, enquanto as famílias de imigrantes traziam na mesa alguns pães, manteiga e café preto e assim sucessivamente, em cada cultura e país.


Naquele núcleo não havia textos, as imagens falavam sozinhas. O consumo de combustíveis fósseis e o impacto dele no meio ambiente foi, provocativamente, trazido à baila por um enorme totem de resíduos de todo o tipo, ao qual se chegava seguindo as marcas de pneus no chão.


Apesar dos outros museus incríveis daquele país, não esquecerei minha tarde neste museu que me pegou pelo aspecto criativo com que abordou um tema complexo, difícil e o trouxe para o campo da vida cotidiana das pessoas.


Por fim, me cabe advertir: criatividade no museu e na vida significa romper com a acomodação e com a máxima que muitas vezes domina a cena, onde o jargão “aqui é assim” ou “sempre foi assim”, precisa ser deixado de lado para que seja assumido o risco do novo, insumo do ser criativo.


Por Doris Couto, Porto Alegre, RS.


Mini Bio: Diretora do Museu Julio de Castilhos ( RS). Mestra em Museologia e Patrimônio (UFRGS). Graduada em Museologia (UFRGS). Especialista em Políticas Culturais de Base Comunitária(FLACSO/AR).


NOTA da Redação:

A museóloga Doris Couto abriu mão da indicação do IBRAM - Instituto Brasileiro de Museus - , para ser diretora Museu Histórico Nacional.

Veja matéria da Criativos!



 

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