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Foto do escritorLéo Viana

DA RUA




Era mais autêntico na rua, o Lino. Em casa e no trabalhoera um arremedo de marido, de pai, irmão, filho, colega. Não fazia feio, mas representava. Suas atuações levariam dúzias de palmas de ouro, Kikitos e Oscars.


 Tinha aprendido assim e se empenhava pra manter a qualidade da atuação. Nunca deixou a peteca cair. Querido por mulher e filhos, parentes e colegas, tinha certeza que fazia a coisa certa. Nada valeria o sacrifício da felicidade de seus queridos, mas era a rua a sua pátria, o seu habitat, o seu ecossistema. Era na rua que almoçava diariamente, em todos os quase infinitos anos de serviço público em diferentes edifícios do Centro do Rio de Janeiro.


Era na velha e meio derrubada Copacabana que reunia os amigos em intermináveis encontros regados às cachaças de boa procedência que alguns deles traziam, escondidos das respectivas cônjuges que, crédulas, viviam certas de que se tratava de reuniões de trabalho. Era da rua urbana, tanto que nunca atendeu ao pedido da família por uma casa de serra ou praia.


Ao contrário, com as economias de uma vida, comprou um apartamento enorme na desvalorizada Sá Ferreira, final de Copacabana. Os filhos acharam estranho, mas gostaram. A mulher ameaçou com um pedido de divórcio, mas temia jamais encontrar outro marido tão bom, apesar dessa teimosia pontual e do amor à rua.



O Lino viu outros se perderem no jogo, em amantes, prostitutas, drogas. Tentou ajudar, nem sempre conseguiu. Seu grande vício era a rua, mas não ao ponto de prejudicar o resto da existência. Gostava das pessoas da rua, dos eventos da rua, da civilização visível na rua. Até da incivilidade que se manifesta nas ruas ele gostava. Era feliz no pequeno tempo que durava o deslocamento de casa ao trabalho, de manhã. Era puro contentamento na saída da repartição e nos minutos que levava pra chegar em casa após o dia de expediente.


Preferia os ônibus ao metrô, pra garantir que ficaria mais tempo na rua e olhando para a rua. Inventara pra si até mesmo uma claustrofobia, que dava ares terapêuticos às viagens demoradas nos ônibus de janelas abertas e comdesconforto. Mas, como sabemos, nem sempre ia pra casa. Na altura do posto 2, bem distante do posto cinco, onde tinha apartamento e mais ainda da Tijuca, onde levava a vida de fato.


 Não era exatamente chegado aos vizinhos, a maioria militares de pijama e dados a fanfarronices patrióticas e moralistas. Adicionalmente, muitos tinhamuma vida paralela  que envolvia amantes e outras razões não confessáveis para justificar o tempo que passavam fora de casa.


O Lino, secretamente admirado até por eles, só se excedia no tempo de rua por amor a ela e aos amigos que, como ele, achavam a vida bonita fora de casa.



Os muitos anos de circulação fizeram do Lino um personagem reconhecido nos lugares em que era visto. Desde jovem e agora já como “Seu Lino”, era o mesmo sujeito feliz por estar na rua, por interagir com a cidade, com os comerciantes, com quem passava. Se sentiagenuinamente incorporado à paisagem, quase parte do mobiliário urbano.


 Nas muitas praças e ruas arborizadas, se imaginava companheiro das árvores, muitas das quais viu crescer, tal como filhas queridas. Lamentava as podas radicais ou – pior - a supressão de qualquer delas por doença ou “incômodo de vizinhos”, uma das mais comuns e absurdas razões, na leitura passional do Lino, para o corte de uma árvore.


Algumas outras coisas, obviamente, o incomodavam. Além dos maus tratos às árvores, os postes e aquele emaranhado tosco de fios por toda parte davam nos nervos, o que o obrigava, por razões profiláticas, a evitar olhar pra cima. Não conseguia entender porque, no século XXI, vencidas tantas batalhas tecnológicas, ainda se convive com essa fiação exposta, que oferece risco, enfeia a cidade e não garante a qualidade dos serviços prestados, ainda que, pra ele, fizessem pouca diferença os serviços que atendem às casas. O melhor da vida, repetia, está na rua.



Filhos criados, idade avançando, aposentadoria a um passo, Lino não se continha em si de felicidade. Dizia aos amigos de cachaça que finalmente, a pouco de se libertardos grilhões do trabalho, poderia se dedicar sem limitações a seu maior amor. Poderia trocar o infinito tempo do expediente pela rua e passar a presenciar o que não pôde ver enquanto trabalhava.


 A cidade das 9 às 18, em seus turnos de maior atividade, de entropia máxima, com mais gente na rua em busca dos meios de prover sustento e felicidade pra si e pros seus. Gente se acotovelando nos transportes, nos restaurantes, bares, comércio em geral, casas de apostas, caixas eletrônicos. E ainda a gente esquecida, que vaga pela cidade sem  admiração, por ser  rejeitada pelo cotidiano da urbe, pornão participar da festa de fartura que a cidade oferece, ficando, quando muito, com os restos do banquete urbano. Inquietações que também afetavam o Lino.



A mulher notou que ele andava um pouco menos efusivo. Talvez fosse a iminência da aposentadoria, talvez a perda de algum amigo querido, que ele nem sempre dividia com ela por não achar interesssnte trazer mazelas da rua. Só trazia alegria.


Mas a alegria foi definhando. A rua parecia não mais alimentar o espírito efusivo do Lino.

O diagnóstico nunca foi preciso, mas o Lino definhou mais na alma que no corpo, junto com o esvaziamento da cidade. Com mais tempo livre, viu o comércio perder espaço para as compras virtuais; o fim dos cinemas de rua; a febre dos shoppings; a explosão da insegurança; os namoros virtuais, que prescindem da rua.


Pobre rua.

Deixou os ônibus. Adotou o metrô. Sem paisagem, sem conversa, sem os sons da cidade. Recolheu-se por fim.


Num descuido de travessia de avenida, já sem a agilidade dos bons tempos e sem o mesmo ímpeto pra descobrir novos ângulos e possibilidades da rua, foi atingido por um ônibus.


As cinzas, tinha deixado expressamente escrito, deveriam ser discretamente espalhadas pelas ruas da cidade.


Talvez ajudassem a fertilizar novamente a sociabilidadeque vinha se perdendo.

Tinha vivido pra isso.

 

Rio de Janeiro, setembro de 2024

 


 

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