DANDARA
Vivia longe do litoral africano. Nunca tinha visto o mar e nem sabia que existia. Aquela água toda, salgada, azul e contida. Porque não andava, como um rio? Batia na praia e voltava. Também não sabia que havia gente má, do jeito daqueles que a tiraram de casa, ainda menina, pra fazer andar pelo mato tanta distância até perto do mar. Comida quase nenhuma, muita bronca, muita grosseria, os adultos apanhando. Ela até não apanhou, mas sofreu com os outros no deslocamento forçado. Depois, presa com todo mundo num galpão sem cobertura, sob chuva ou sol ou dia ou noite, viu os primeiros homens de outra cor, falando estranho, vestindo estranho, muita roupa naquele calor todo.
Em poucos dias foram embarcados, à força e sob castigos físicos, num barco estranho, muito maior que as canoas de pesca que conhecia dos rios de perto de casa, mas tão desconfortável quanto. Aliás, não. O barcão era muito pior que as canoas de pesca que aprendera a manejar com o pai. Naquele barco grande e feio não havia como se sair, com os pés presos por correntes. Não sabia antes o que eram correntes pra prender gente. Em língua estranha, os brancos gritavam do teto do barco. Os negros viajavam dentro, no escuro. Muita gente morria e era retirada. Ali mesmo todos se aliviavam do que havia dentro de si. Muita merda, mijo, vômito. A viagem durou muito, limparam duas vezes, quando vieram tirar corpos. A comida, quando havia, era muito ruim e estranha, podre mesmo. O lugar fedia a morte. Os brancos também. Não entendia como aquilo podia acontecer.
Muito tempo depois, chegaram a um lugar quente. Soube depois que era o Rio de Janeiro. Não tinha rio à vista, mas chamava Rio. Aprendeu logo a palavra de branco pra rio. E pra mar. Menina nova, foi arrematada no leilão pra trabalhar numa casa de branco. Nunca mais viu os parentes, viveu triste lá, mas se superou. Queria ter forças pra viver mais e conseguiu. Aprendeu a língua estranha que os brancos falavam e também ensinou algumas palavras para eles. Eram ricos, mas eram intelectualmente limitados, lhe pareceu. Foram tempos de muito sofrimento e dor, mas de aprendizado e reflexão também. Antes, conhecia a guerra entre tribos. Conhecia a morte. Só não conhecia a maldade pura. Agora conhecia.
Um dia encontrou uma vizinha da África na rua, quando saiu pra buscar água no Boqueirão. Reconheceram-se e passaram a planejar a fuga. Aos poucos, paciente e diligentemente, juntaram coisinhas, roupas, uma ou outra moeda encontrada aqui ou acolá, e após mais alguns anos de muito sofrimento, fugiram, subindo a serra da Tijuca, cruzando uma cidade então muito pouco povoada além do Campo de Santana, na época considerado distante. Lembrava bem o que tinha andado na África para ser escravizada aqui. Nem 100 vezes a distância do Campo igualaríam aquele horror. Sabiam que na Tijuca havia muitas fazendas, capitães do mato em busca de escravos fugidos, mas também um ou outro quilombo onde a gente preta se reunia e se protegia.
Sobreviveram por um período sem achar quilombo, mas sem serem encontradas também. Uma fruta aqui ou ali, um escravo ou escrava pela rua com quem pudesse conseguir uma comida escondida de alguma fazenda. Não encontraram conhecidos, mas acharam gente que falava a mesma língua africana ou o português. Sorte delas. Poucos falavam. Sorte também não terem sido traídas por algum escravo ou escrava mais fiel ao senhor.
O plano parecia fadado a não dar certo. Já estavam se escondendo há meses, quando finalmente foram levadas ao quilombo por um observador que as seguia.
Num ponto distante da serra, longe dos olhos de todos, os negros se reuniam. Fogo sempre baixo, vozes sempre baixas, rituais quase silenciosos. A mata protegia a vida, os cultos, os reencontros. Ali planejavam um futuro possível, na iminência de que aquele pesadelo da escravidão terminasse a qualquer momento. Foi no Brasil que ela aprendeu a contar o tempo como os brancos. Só depois de muito tempo soube que viviam o ano de 1690. Não sabia, por óbvio, que um grande quilombo existia em Alagoas, onde pontificava Zumbi, referência naqueles tempos de Serra da Barriga e para muitos anos depois, mesmo tendo sido assassinado em 1695. Neste mesmo ano, o quilombo em que viviam no alto da Tijuca foi destruído num ataque de caçadores brancos. Ela e a amiga conseguiram fugir a tempo, mas acabaram também encontradas e presas dois dias depois, na estrada que levava à parte baixa da serra, ali onde hoje em dia fica a Muda, o Borel, a Usina.
Não chegou a apanhar. Acordou com um susto na Pedra do Sal, perto do Valongo, onde tinha desembarcado do navio negreiro.
Dandara, esse é o nome. O mesmo da mulher de Zumbi dos Palmares. Pois bem. Dandara acordou do sonho complexo, com muitos detalhes e história, no final da roda de samba.
Tinha trabalhado demais por toda a semana, lido teses, dissertações e livros sobre o assunto, pra escrever sobre os quilombos no entorno da Cidade do Rio, tema de sua tese de doutorado.
A orientadora no cangote, a bolsa atrasada, o diretor da escola convocando de volta, o namoro fazendo água, a paciência nas últimas, as noites em claro.
Tomou uma cerveja só, mas foi ela quem a levou ao sono profundo em que caiu mesmo com todo o samba em volta. Os amigos saíram cedo. Ela foi ficando, ficando... Apagou.
A dor no pescoço agora não era resultado de castigos no navio e as picadas de mosquito não eram do meio da mata da Tijuca.
Lavou o rosto, pediu mais uma cerveja, ligou pra melhor amiga e contou o sonho.
Melhores amigas desde um encontro fortuito perto da Lagoa do Boqueirão, aterrada pra dar lugar ao Passeio Público , parque inaugurado em 1779. Emocionou-se com a lembrança do sonho.
Deu mais uma passada no Cais do Valongo antes de chamar um táxi pra casa. Foi ali o desembarque dela e de mais de um milhão de homens e mulheres trazidos à força da África.
Correu um lágrima. Pelos que chegaram, pelos que ficaram no meio da travessia (dizem até que os tubarões do Atlântico ficaram viciados em carne humana depois de quase 400 anos de corpos sendo jogados de navios regularmente) e por todos os outros.
Tarde da noite, passava da hora de ir pra casa. Só no táxi lembrou que era novembro.
O motorista perguntou se ela não tinha medo de andar sozinha naquela área da cidade tão tarde da noite.
Ela riu antes de responder.
- Tem muita gente comigo aqui... O senhor nem imagina.
Rio de Janeiro, novembro de 2023.
A Influência Vital da Criatividade Negra no Desenvolvimento Global: Um Olhar sobre a Cedro Rosa
A riqueza da criatividade negra tem sido um farol na evolução das populações ao redor do mundo, impulsionando mudanças culturais e econômicas significativas. A música, arte, cultura e poesia produzidas por pessoas negras têm moldado narrativas, inspirado movimentos sociais e transformado indústrias.
A força da música feita por pretos, no mundo.
A Cedro Rosa , em sua jornada pela promoção da música independente, desempenha um papel crucial. Certificando obras e gravações, essa instituição tem sido uma plataforma vital para artistas emergentes, fornecendo uma base sólida para distribuição e licenciamento em diversas trilhas sonoras globais. Esse apoio tem gerado não apenas visibilidade, mas também oportunidades econômicas tangíveis.
Ao conectar talentos emergentes a projetos em expansão, a Cedro Rosa não só fomenta a diversidade musical, mas também estimula a criação de empregos e geração de renda. Essa abordagem não apenas celebra a diversidade, mas também destaca a contribuição substancial das comunidades negras para a indústria criativa global.
Cedro Rosa na FIHAV 2023, Festival Internacinal de Havana.
Através da Cedro Rosa e iniciativas similares, vemos um modelo exemplar de como a criatividade negra não só enriquece a esfera artística, mas também impulsiona a economia, elevando comunidades e criando um espaço inclusivo para a expressão artística diversificada e influente.
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