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De Repente

Foto do escritor: Leo VianaLeo Viana



O Lito era um deslocado. A vida era de uma normalidade acachapante, ele cumpria regras, pagava impostos, trabalhava no horário devido e nunca, jamais, fizera algo que pudesse, nem de longe, funcionar como uma ameaça a quem quer que seja. Uma pessoa que, como um bom juiz de futebol, talvez passasse despercebida por todos. Não inspirava paixões, grandes desejos. Não era feio nem bonito, alto ou baixo. Não era negro retinto, mas também não era branco. Nem ruivo era, o que podia chamar a atenção de alguém menos acostumado a cabelos vermelhos.


Estudara até o final do nível médio numa escola sem glamour e decidira abandonar os estudos pra trabalhar. Como não tinha muitos amigos, talvez nenhum, os pais foram os únicos a sugerir que ele continuasse com os estudos. Mas ele estava irredutível. Queria trabalhar. A vontade venceu as opiniões contrárias e o Lito começou a carreira num supermercado, repondo produtos nas prateleiras. Ágil, foi até notado, a ponto de virar supervisor dos repositores. Em poucos anos era gerente de estoque e hoje é coordenador de logística da rede toda. 


Deixou de ser conformado pra ser orgulhoso de suas conquistas. Só pra ele,  numa espécie de culto interno que mantém a si mesmo. Fora do ambiente de trabalho, onde é autoridade, o Lito é a mesma pessoa sem expressão ou destaque que o mundo viu nascer e crescer. Paradoxal, o Lito. Um dia, o Lito acordou com um princípio de revolta. Na vida, tinha lido os livros que a escola recomendou. Um pouco de literatura e os livros didáticos. Na empresa, se obrigou a estudar logística, o que o levou a estudos antes impensáveis sobre tempo, volume, velocidade, horas de trabalho, custos. Eram fracas as escolas por onde o Lito passou, apesar da literatura.


Saiu sem saber matemática e fisica, mesmo o elementar. Precisou aprender na prática. Não tinha, até então, noção de escalas e grandezas, essas mumunhas quantitativas. Tinha lá o que todo mundo tem de impressões sobre o que é grande ou pequeno, alto ou baixo, mas tudo de modo sensorial, intuitivo, expedito. Entendia as dimensões a partir de comparações não necessariamente razoáveis, mas aprendeu com o tempo.


Um dia o Lito acordou diferente e capaz de raciocínios mais elaborados. Não sabia exatamente o que tinha acontecido, mas o sentimento era da quebra daquela normalidade com a qual se acostumara na vida. A partir da recente capacidade desenvolvida  para proporções e dimensionamentos, nada que fosse muito complexo, mas o suficiente pra atender às crescentes demandas do trabalho, alguma coisa fez o Lito despertar pro entorno, para o que não era necessariamente mensurável, ou que talvez fosse, mas que fazia a diferença entre uma vida sem atrativos e propósitos que não fossem os valores do trabalho e das obrigações e esse novo mundo que se descortinava pra ele, que passava por uma tomada repentina de consciência sobre o que vivia, as desigualdades, a humanidade.


Em sua quase oligofrenia, não entendia direito o que acontecera,  mas de repente via claramente que o mundo era injusto, inclusive com ele, que trabalhava horas e horas, tinha muitas responsabilidades e  não era proporcionalmente remunerado. Em suas limitações, jamais notara o quanto de gente vivia em condições ainda piores que as dele. Tinha ascendido à classe média pelo trabalho, mas de repente se dava conta que era uma exceção e não uma regra. De repente, assistindo com um pouco mais de cuidado aos telejornais que sempre evitara, se dava conta de que o mundo caminhava a passos largos para um nivel de catástrofe talvez nunca vivido antes, ainda que lembrasse, vagamente, das guerras descritas pelosprofessores de história.


De uma hora pra outra, entendia que o governo de Israel vinha praticando atrocidades que envergonhariam seus ancestrais, ao menos pelo que ele lembrava da escola. De repente a democracia americana, que gostava de se impor como padrão internacional, tinha virado um negócio meio miliciano, com uma espécie de cúpula do jogo do bicho assessorando o chefe. De hora pra outra, grande parte do mundo passou a questionar a ciência, a mesma que foi base pro desenvolvimento tecnológico astronômico a que  chegamos, só porque ela anda fazendo alertas sobre os riscos das emissões atmosféricas.


Acham que a ciência só tem credibilidade se ela disser o que se quer ouvir.. Sem aviso nenhum, uns irresponsáveis questionaram a eficiência das vacinas, as mesmas que nos livraram da poliomielite, da febre amarela e se mais um monte de doenças. E é gente que tomou vacina, tem marca de BCG no braço e tá protegido. Sem mais nem menos, como numa revelação súbita, o Lito viu gente pacifica da vizinhança se manifestando de um jeito estranho, pedindo a volta de tempos mais sofridos. E disso ele lembrava bem, por mais desligado que fosse.


Lamentou não ter percebido antes. Tanta coisa acontecendo e ele num mundinho seu, particular, não interativo. 


Coisas boas também aconteciam. Gente bonita, interessante, inteligente, propondo soluções ou alternativas pra um mundo tão caótico, ou organizado de acordo com interesses que não atendem aos desejos da maioria.


Mudou o visual. O cabelo sempre bem aparadinho foi ficando rebelde. A barba sempre feita, de repente começou a reflorestar o rosto. As calças com vinco foram se tornando amassadas e foram aos poucos trocadas por modelos alternativos. No trabalho, estranharam, mas a competência técnica venceu. Pela primeira vez teve vontade também de estudar. Sabia das limitações teóricas que tinha e foi atrás.


Da última vez que tive notícia dele, tinha ido morar com a namorada, a segunda da vida, já depois da mudança de hábitos. Faz mestrado em história e já é professor da rede pública. A logística ficou pra trás. Ganha menos, mas é mais feliz.


As pessoas têm jeito. Ou, como diz a Fernanda Torres, “a vida presta!”.

 

Rio de Janeiro, fevereiro de 2025.


 

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Foto: Cristina Borges / Bahia




 

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