FESTEJOS
Tinha 14 anos, o Zacarias, quando o General Mourão Filho começou a marchar de Minas pro Rio pra derrubar o Jango. Ouviu no Rádio. Gostava de rádio, mas queria mesmo era ouvir bossa nova, quando o plantão interrompeu o Chega de Saudade, com o violão incrível do João Gilberto e tudo, para avisar que o bicho ia pegar. O Zacarias não entendeu direito na hora, mas não se conformava com a interrupção da canção.
A notícia continuou e soube ali que certo General Kruel cujo nome jamais esqueceria, e que chegou a ser tido como moderado, até interlocutor do governo, propôs a Jango a demissão de ministros tidos como comunistas, como Darcy Ribeiro e Abelardo Jurema e, ao receber um não, tornou-se um dos articuladores do golpe.
Bem mimado, esse general, pensou o Zaca.
Ainda por ali, entre o final de março e o início de abril de 1964, o Zaca soube da posse do Ranieri Mazzilli e, em seguida, do General Humberto de Alencar Castelo Branco, cuja memória prometeu, por conta própria, amaldiçoar pra sempre.
Não acreditava que uma maldição sua fosse suficientemente poderosa pra terminar com a ditadura que se iniciava, mas tinha aprendido na escola que a democracia era um valor importante, ainda que fosse, na história do Brasil, uma personagem pouco frequente. Acreditou que valeria a aposta.
Aos poucos, por alguma razão que fugiu a uma escolha sua, passou a ouvir com mais interesse o noticiário. Talvez fosse um medo de ser novamente interrompido em seu hábito de ouvir música no rádio. A nova rotina o levou por caminhos tortuosos. Soube da cassação de parlamentares, ouvir falar da já ocorrida marcha da familia com Deus, foi sistematicamente alertado sobre a ameaça comunista.
O que mais o incomodava, no entanto era a mudança ocorrida na escola, com o desaparecimento súbito de professores aos quais tinha se afeiçoado muito. O professor de geografia, que discutia e ensinava de um jeito muito interessante a respeito das mudanças na geopolítica do mundo após a segunda guerra mundial, com a Cortina de Ferro a leste e o domínio americano radicalizado a oeste. A professora de história, que explicava em detalhes a então recente Revolução Cubana e seu alinhamento com os russos, à luz da história dos movimentos pela independência de Cuba, especialmente sob a influência de José Marti, herói de revolucionários e de contra revolucionários.
Um primo, quase da mesma idade, dois anos mais velho, entrou para o exércitoem1966. Menos ligado nas notícias e no que acontecia no entorno, achou que era um emprego seguro. Entrou como reservista e pretendia permanecer pelo tempo possível. Sem saber de muita coisa, mas por contingências – e continências – do trabalho, comentou com Zaca sobre a recorrente prisão de gente que era contra o governo. Disse mesmo ter ouvido gritos e espancamentos. Normalizava aquilo porque achava que podiaser treinamento de guerra, mas começou a ficar desconfortável e viria a pedir baixa em 1969.
O Zaca misturou as informações dos noticiários com as do primo e decidiu por um pacto de silencio consigo mesmo. Mas um pacto de silêncio regido por um ódio a quem parecia querer roubar o seu futuro, além do presente, na medida em que a censura e as restrições de toda sorte aumentavam, como viu durante o AI5.
Ingressou na engenharia da Escola Politécnica em 1967. O amaldiçoado Castelo ainda era o presidente, mas em 18 de julho, quando a família subia a serra pra um fim de semana de inverno em Petrópolis, o rádio anunciou a morte dele num acidente aéreo.
Diante dos comentários de todos, o Zaca permaneceu em silêncio, mas vibrando de emoção. E tomou ali a decisão de festejar a morte dos ditadores, desejando fortemente ter saúde pra isso ao longo da vida. Bebeu uma secreta dose de whisky em casa, depois de ajudar o pai acender a lareira. Os pais mantinham bebida em casa mas não admitiam que os filhos bebessem antes dos 18 anos. E o Zaca ainda tinha 17.
A vida seguia sem percalços para a família de Zaca e ele seguia sua doutrina de odiar intimamente os ditadores, mas sem alarde. A família de classe média tradicional não falava de política. Ele sabia que eles não eram favoráveis ao que acontecia, mas não eram militantes. Eram apenas cidadãos comuns que não acreditavam que aquilo tudo pudesse ter um bom final, mas preocupavam-se mais com a educação dos filhos e com a garantia de trabalho pra eles no futuro.
Zaca já tinha 20 anos em 17 de dezembro de 1969, quando Arthur da Costa e Silva, o ditador seguinte e responsável pelo que foi a pior fase da repressão até ali, o AI5, morreu após um derrame. Zaca, numa confraternização com os colegas da faculdade, bebeu um pouco mais que todo mundo, mas sem perder a consciência. Só porque a data merecia a comemoração solitária que prometera pra si mesmo.
Entre dezembro de 1969 e 09 de outubro de 1985, a espera foi longa. Só nessa data, depois de anos de muita tristeza com os apertos do início dos 70, o desaparecimento e tortura de amigos, mas já depois da abertura e até da eleição indireta que escolheu o Tancredo mas levou o Sarney, o engenheiro Zacarias, especializado em obras de grande porte, tendo viajado pra fazer estradas em países distantes e tudo, pode festejar, a seu modo, a morte de Emílio G. Medici, levado por um infarto.
Aquele que foi considerado o pior dos ditadores demorou muito a ir. As mudanças de vida não mudaram a vontade de celebrar, mas via o tempo passando e lamentava. Podia, ele mesmo, sofrer algum tipo de problema e nem ter condições de festejar como queria. Solteiro aos 36 anos, não dividia com ninguém, mesmo já em tempos de abertura, sem a antiga pressão da ditadura, suas celebrações secretas. Comprou uma quantidade levemente exagerada de maconha e uma garrafa de conhaque. Fumou e bebeu o quanto resistiu e só lembra de acordar com dor de cabeça no dia seguinte, mas feliz. Menos um.
Ernesto Geisel só bateu as botas em 12 de setembro de 1996. Zaca ia fazer 47 anos. Nascera no início de outubro de 1949. A namorada de então, a Edith, francesa e comissária da Air France, estava de passagem pelo Brasil. Quando a noticia chegou pelo rádio, o hábito que nunca perdeu, Zaca se apressou em abrir uma champanhe no apartamento de Copacabana. A namorada não conhecia o ritual e achou, com razão, que a felicidade era por sua chegada. Só desconfiou um pouco do momento, já que o Zaca interrompeu subitamente, diante da notícia, um momento íntimo muito mais prazeroso que uma taça do melhor espumante francês. Os brasileiros são muito festivos, ela pensou consigo mesma.
Aos 50 anos, o Zaca tinha reunido, para o Natal, uma turma de colegas do curso de engenharia, algumas ex-namoradas, com quem mantinha uma amizade sem sustos, incluindo a Edith, o primo ex-militar dos anos 60, que agora era um músico razoavelmente bem sucedido, colegas de trabalho e alguns outros parentes ainda vivos em seu apartamento, agora um pouco maior, ainda em Copacabana.
Discreto e solteiro convicto, Zaca tinha se tornado um gourmand. Era bom na cozinha e, com as viagens ao redor do mundo, tinha aprendido muitos segredos culinários interessantes e receitas que ansiava por dividir com gente querida. Estava empenhado na terminação de um prato de bacalhau tradicional de uma região pouco explorada de Portugal, diferente das receitas mais conhecidas, quando um desavisado, chegando da rua, onde tinha ido buscar água com gás e coca cola, já como medida profilática ao consumo exagerado de vinhos previsto para aquela noite, avisou que o João Batista de Figueiredo, o último dos generais presidentes, tinha morrido.
A reação do Zacarias foi além do habitual. Deixou a terminação do prato por um instante, reuniu os amigos todos para um brinde. E gritou alto:
- Consegui!!
Ninguém entendeu nada, mas ele tinha mesmo conseguido.
Aos 75 anos, hoje em dia, o Zacarias ainda está bem de saúde, faz suas caminhadas na praia, encontra os amigos. Não sabe se vai conseguir, mas desde 2018 passou a pensar em festejar novas partidas. Nem bebe mais, mas tem uns vinhos raros em casa pra uma excepcionalidade.
Rio de Janeiro, novembro de 2024.
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