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Foto do escritorLéo Viana

Finais




Quem viveu a época lembra daquelas experiências sociais dos filmes da guerra fria dos anos 60-70, voltadas para a criação de super dotados ou de heróis, não é? Pois bem. São todas fortemente baseadas nos métodos nazistas ou stalinistas para a obtenção da raça que habitaria o “espaço vital” almejado pelo Reich ou na formação daqueles atletas da cortina de ferro, incluídas aí aquelas pequeninas garotas da ginástica romena.


Experiência semelhante ocorria na casa do Ricardinho.


Não. Os pais não queriam que o coitado fosse um super atleta, apesar da carteirinha do clube mais exclusivo da Zona Sul. E o espaço vital que ele deveria ocupar no futuro era a cadeira de presidente da companhia fundada pelo avô, a maior construtora daquele Brasil pós lava-jato, o que, a olhos não exigentes, soava como uma espécie de “atestado de idoneidade”.

A vida de Ricardinho era pautada pelo avô. Escola bilingue desde o maternal, natação no clube uma horinha toda tarde, educação financeira e empresarial desde a adolescência, amigos selecionados entre os herdeiros conhecidos da família, um mês na Europa e outro nos Estados Unidos desde que se entendia por gente.


Escute essa Playlist de samba, na Spotify.


O Ricardo, pai do Ricardinho, tinha sido despachado pelo patriarca para uma função subalterna em Singapura, numa representação internacional da companhia. A vergonha da família. Além de aluno meia-boca na escola alemã, arrumara, num descuido dos pais, uns amigos classe média de Copacabana que só pensavam em garotas e praia, estudavam em escolas inclassificáveis e tinham como objetivo na vida o ingresso naqueles antros que eram as universidades federais brasileiras. A família descobrira, tardiamente, que entre uma e outra idas ao Aeroporto Santos Dumont, Ricardo vinha subornando o motorista da família para paradas estratégicas em botequins ali perto da Siqueira Campos, onde confraternizava com essa escória.


O curso de Economia na FGV (em São Paulo, claro) e o inglês corrente aprendido nas mesmas viagens obrigatórias desde a infância, eram o suficiente pra que auxiliasse, mesmo a contragosto, algum preposto da empresa no exterior. Melhor em Singapura, longe das distrações do ocidente. A esposa reclamou, mas foi seduzida pelas cifras. A joia da coroa era o Ricardinho, que ficou pra ser preparado pelo avô para a sucessão. Ricos de verdade não são muito dados à discussão...

Tudo parecia funcionar muito bem. Ricardinho não decepcionava. Aluno bom, cercado pelos seus amigos selecionados. Um pouco bom de bola demais, o que causava algum constrangimento. Volta e meia era advertido por jogar bola em horários impróprios, mas a escola preferia não relatar à família, grande benfeitora da instituição.


Que playlist no Youtube! Samba!


Até que, movida pelos benfeitores da Europa, a escola passou a receber pobres. E ainda pretos!

A volta das férias foi parecida com o de sempre. A professora de língua portuguesa exigindo aquela redação de férias. Como regra geral, grandes textos citando estações de esqui na França, Suíça e Estados Unidos. Um ou outro surfe em Noronha, excepcionalmente um Safári na África do Sul.


Os novos alunos não tinham tanta riqueza de assunto, mas não decepcionavam ao relatar sua realidade mais crua. Tiroteios perto de casa, abordagens policiais violentas, racismo, discriminação social e violência doméstica estavam no cardápio. Dois deles, por razões diferentes, aproximaram-se do Ricardinho. O Alvinho, moleque esguio e de pensamento rápido, era um pequeno gênio da bola, com um futuro que se desenhava brilhante tanto nos bancos escolares quanto no gramado verdinho e bem cuidado do campo de futebol da escola de elite. E a Aninha, prima do Alvinho, que ganhara uma bolsa porque vencera a olimpíada de matemática do ano anterior, inclusive derrotando alunos de escolas como aquela, mesmo vindo de uma escolinha estadual caindo aos pedaços ali nas proximidades. Aninha tinha um outro predicado.


Era a menina mais linda que jamais tinha passado pelas retinas do Ricardinho, acostumadas a ver muita coisa mundo afora. Um deslumbre. Diferente do padrão reinante na escola, preta, olhos vivos, pele brilhante, rosto expressivo e cabelos em tranças perfeitas feitas pela mãe orgulhosa. Os 14 anos de todos eles anulavam-se mutuamente como numa operação matemática de denominador comum. Irmanaram-se como se houvessem nascido juntos. Alvinho e Aninha tornavam-se a cada dia mais cientes das diferenças entre eles e o restante dos meninos e meninas dali, mas isso não os incomodava muito. Acompanhavam bem o andamento das disciplinas e, salvo por um ou outro escorregão no domínio da língua estrangeira, as diferenças eram apenas físicas.


Mas o Ricardinho, dizíamos, encantou-se demais com os dois. Fez do Alvinho, apesar de alguma resistência inicial, seu melhor amigo dentro e fora dos gramados, ao menos durante o período que passavam na escola. E apaixonou-se pela Aninha. Aquela paixão sofrida, dramática como são as paixões aos 14 anos de idade.


A paixão não durou ou teve maiores consequências. A amizade permaneceu e a família do Ricardinho até passou a admitir visitas dos amigos à mansão. O Ricardinho também passou a frequentar uma ou outra festa na comunidade, quando o clima se anunciava favorável e era baixo o risco de incursões policiais ou invasões de quadrilhas ou milícias rivais.


Cantoras incríveis nesta playlist da Spotify!


A vida foi generosa. Ricardinho foi enviado para os Estados Unidos, para cuidar dos negócios da família por lá, assim que terminou o curso de Engenharia de Produção, alguns anos depois. Aninha é comissária de bordo em uma companhia que faz voos nacionais. Conseguiu cursar a faculdade de administração em uma universidade pública mas, cansada do assédio permanente nos escritórios das empresas em que estagiou, foi atrás do antigo sonho de voar. Alvinho largou os estudos no nível médio pelo sonho de jogar futebol profissionalmente. Destaque num campeonato entre comunidades, foi selecionado para treinar em um grande clube e logo encaminhado ao um maior ainda no exterior.


Encontram-se eventualmente até hoje, geralmente onde o Ricardinho estiver em férias, e riem das histórias do passado comum.


As histórias inventadas podem ter o final que a gente quiser, inclusive óbvios ou injustos, imprevistos, macabros, escatológicos, machistas, feministas, imorais. São histórias inventadas.

As reais, ao contrário, raramente terminam bem quando envolvem pobres e pretos e suas relações com os ricos, geralmente marcadas por algum tipo de hierarquia.


Que vivamos para assistir, algum dia, à naturalização dos finais felizes!!!


Rio de Janeiro, agosto de 2022.

 

Papo com Leo Viana, Lais Amaral e João Damasceno, com musica de Roberto Lara e Tuninho Galante.



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