FOLHA EM BRANCO
A folha em branco se mostrava resistente como nunca.
O desafio de transformá-la em algo que fizesse sentido parecia cada vez maior.
Não que a folha em branco, de per se, não contivesse um sentido pleno. Não a estava desafiando. Mais de uma vez, especialmente em exposições de arte, fora confrontado com quadros brancos absolutamente expressivos, agressivos até. Mas tinha feito a opção, desde há muito, por outra forma de arte, na qual não se incluía o vigor de uma obra monocromática. A folha em branco, para a literatura, é um intervalo que pode ou não fazer parte da criação.
Lembrava, com certa nostalgia, das cenas de filmes em que escritores ou escritoras eram pegos diante da folha em branco em suas antigas máquinas de escrever. Em mais de um desses filmes, a história girava em torno do desafio de iniciar uma história sob pressão de editores, da falta de comida em casa ou em decorrência do repentino sucesso editorial do(a) cônjuge. Não era isso que o pressionava agora. Nem editores nervosos pelo cumprimento do contrato, nem a família ou a eventual falta de dinheiro. O que pressionava o Carlinhos era uma necessidade existencial de escrever.
Vinha fazendo isso há muito tempo, imaginando que, à sua moda, escrevia cartas para o futuro, com a preocupação de deixar algum tipo de testemunho dos tempos que tinha vivido e com um medo terrível de que não houvesse relatos fiéis pras gerações futuras. Estava tudo muito contaminado por um jeito polido de escrever. Não que devesse relatar com a crueza dos homofóbicos e misóginos anos 70 e 80, por exemplo, ou concordar com as piadas de cunho racista e sexista que por anos dominaram a produção nacional de humor, tão censurada politicamente naquela mesma época, a mesma do apogeu cinematográfico da pornochanchada. Uma esquizofrenia de costumes. A defesa apaixonada da “família tradicional” e dos “valores cristãos”, que justificava o comportamento homofóbico de tantos, era a mesma que censurava o Gonzaguinha, o Taiguara e o Chico Buarque, mas permitia que 50% das salas de cinema do país exibissem pornochanchadas. Deviam fazer bem pra família brasileira. Sabe-se lá o que pensavam os gorilas da censura...
Não. Não era isso o que queria escrever. Queria escrever sem as amarras do jornalismo acrítico e sem o fervor revolucionário da imprensa da extrema esquerda, mas também sem as meias palavras do reinante acordo de resultados ideológico, que faz lembrar a luta do movimento negro pela absolvição do juiz americano Clarence Thomas, acusado de assédio sexual. Mesmo sendo uma negra de status semelhante quem o acusava, na época em que eram ambos professores. Entendeu o movimento negro de lá que era mais importante ter um juiz negro na suprema corte do que aprofundar a discussão. E o sacana ainda era republicano e reacionário até a última molécula de melanina, punha a culpa do racismo nos negros e dos estupros nas mulheres, como o fazem certas figuras de hoje. Erro histórico nunca corrigido e frequentemente repetido até hoje por setores dos chamados movimentos identitários, que tem toda a legitimidade, mas volta e meia se isolam tanto em suas demandas, que impedem quem quer que seja de marchar ao lado.
A folha continuava em branco enquanto as reflexões o afastavam cada vez mais de um texto possível. Foi aos jornais. Em algumas janelas do notebook, tinha diante de si alguns dos principais do Brasil e do exterior. O mundo da pandemia, estranho, não era exatamente inspirador. As atenções do mundo se dividiam entre a retomada da economia e a contagem de mortos, com intervalos para assistir à Eurocopa ou apostar se as olimpíadas do Japão ocorreriam ou não. E, uma vez ocorrendo, se com público ou sem.
Não havia teclado ainda um único “a” na tela branca do editor de textos. As notícias do Brasil eram ainda menos animadoras. Os jornais, justiça seja feita, tinham até perdido um pouco do pudor de fazer ataques, tamanhas as evidências, tão claras que pareciam soar irreais, da incompetência, corrupção, limitação intelectual, maldade e falso moralismo do governo de plantão. Escrever qualquer coisa talvez tivesse, nesse momento, ares de redundância. Os sócios do grupo que governava construíam prédios ilegais que desabavam em favelas do Rio de Janeiro, queimavam arquivos vivos pelo país afora, numa clara tentativa de não deixar cartas pro futuro, mas deixar pistas.
Os militares, que a despeito de sua predileção pelo poder direto, tinham ascendido a um tipo de eminência parda, ou cada vez menos parda e mais eminência, quase na iminência de voltar ao poder diretamente pelas mãos pouco hábeis (ou muito, de acordo com o ponto de vista) de um ex-membro da corporação renegado por notória incompetência, jaziam agora na vala comum da corrupção diária, da milícia na favela, gás, gatonet, tráfico de drogas e chegando às vacinas, numa pluriatividade comercial que lembra as antigas revistinhas da Hermes, anos depois substituídas em grande estilo pela Amway e agora onipresente nos Submarinos, Amazon e Alibaba da contemporaneidade. Um tipo de MercadoLivre sem frete grátis.
Já estava divagando demais e seguia sem escrever nada. E isso em um momento de tanto assunto, tantas mortes causadas pela pandemia do Corona, onipresente e multifacetada em suas variantes que chegam do mundo todo e nas reações que provoca, do medo absoluto ao negacionismo deslavado, passando por soluções milagrosas e opiniões sem sentido e desaguando na já referida corrupção na compra de vacinas.
E não era só. Em pauta também o crescimento exponencial do feminicídio, entre tantos outros crimes. Mas o destaque era notável. Nunca antes foram noticiados tantos assassinatos de mulheres por homens, em geral ex-maridos ou ex-namorados deixados. Difícil creditar especificamente a alguém a culpa, mas o ambiente criado parecia favorável. Nem sempre vinha de cima uma sinalização tão positiva para o tema como a “fraquejada” descrita pelo presidente ou aquela do “não te estupro porque você não merece”, dedicada a uma deputada da esquerda.
Um amigo fez uma inesperada visita ao Carlinhos naquela hora em que ele se revolvia entre notícias assustadoras e a tela branca. Puxou assunto, mas estranhou a agonia do normalmente prolífico colega escritor diletante. Levou a conversa para amenidades, mesmo com a intenção clara de falar dos horrores vistos na tela da TV, das descobertas da CPI, dos resultados do futebol. Atacou de carnaval, botequim...
Fez mal. Carlinhos desistiu. Levantou-se da frente do computador, retirou uma folha branca da impressora e jogou sobre ela a xícara de café frio que jazia a seu lado desde o início da manhã. O amigo não entendeu nada, mas foi solidário.
Esperou secar e emoldurou a folha manchada, com bordas irregulares e tons variados de marrom.
Tinha decidido que, como carta para o futuro, aquela talvez fosse uma obra mais eloquente.
Datada e assinada, o futuro haveria de entender.
Rio de Janeiro, julho de 2021.
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