Gilberto Gil e Nelson Ned em uma noite incomum
Fui ensinado desde pequeno que as consequências de nossos atos sempre chegam. E mesmo que demore, nos alcançam ainda em vida. Na infância, os mais velhos viviam a repetir o mantra: Aqui se faz, aqui se paga. Claro que a expressão era mais uma forma, até instintiva, de nos incutir valores éticos e comportamentais, para que mais tarde nos tornássemos pessoas de bem. Como se dizia. No “esbarrão” desta semana me veio à lembrança o mantra da infância. Cá no íntimo, acho que fui punido por um deslize. Nada tão pesado como insinuava a bula daquele mantra. E o que Gilberto Gil e Nelson Ned tem com isso?
Gilberto Gil, ninguém desmente, é um dos monstros sagrados da nossa Música. Mesmo as gerações atuais, enamoradas (até por falta de alternativas mais visibilizadas) pelo gênero sertanejo onipresente, conhecem esse baiano genial. O mesmo não se pode dizer de Nelson Ned. Abandonou ou foi abandonado no cenário há algum tempo. Em 2014 partiu desta para melhor, diriam os mais velhos da minha infância.
Nelson Ned, diferente dos seus seis irmãos, nasceu com nanismo, e por isso não superou os 90 centímetros. Ainda criança a família trocou Ubá por Belo Horizonte. Ele já dava mostras do talento para soltar a voz e, decolou. Segundo os registros, foi o primeiro latino americano a vender mais de um milhão de discos nos Estados Unidos. Apresentou-se com casa lotada no Carnegie Hall por cinco vezes. Cantou com Tony Bennet, Júlio Iglesias e outros medalhões. Foi gravado por Agnaldo Timóteo, Moacyr Franco. Vendeu mais de 45 milhões de discos, ganhou discos de ouro no Brasil e no Exterior. Cantou na América Latina, Europa e África. Em 1968 ganhou o I Festival de la Canción, em Buenos Aires com ‘Tudo Passará’, seu maior sucesso (com 40 gravações mundo afora, inclusive a de Billy Eckstine que encabeçou as paradas de sucesso por todo um ano). A canção foi plagiada por astros internacionais e Nelson conseguiu ganhar na justiça o reconhecimento de sua autoria. Ufa! Nada mal para quem teve seu primeiro LP intitulado: ‘Um show de 90 centímetros’, em 1964.
A conexão entre eles na crônica poderia até ser pela coincidência de os dois terem em determinado momento aspirado bater um papo com o Criador. Nelson Ned compôs ‘Se eu pudesse conversar com Deus’ e Gil: ‘Se eu quiser falar com Deus’. Ambas, sucesso, quase no mesmo período. Mas a ligação foi outra. E a encruzilhada fui eu. Nelson Ned habitou minha infância via rádios e minha mãe, dona Zoraide que se emocionava e chamava todos para ver o pequeno grande cantor na TV. Embora seu repertório não mexesse comigo (a exceção é ‘Tudo Passará’) o respeitava. Seu estilo era o que se convencionou chamar de brega. E em dado momento ele poderia ser considerado como a maior estrela brega do país. O que não chega a ser um pecado.
Ouça Gilberto Gil cantando Gilda, de Mário Lago. Cedro Rosa Music.
Em um dado momento da vida, dei de usar a breguice para brincar com pessoas amigas. Mentia “informando” da troca de certa estrela da música que viria à cidade. Geralmente para a tradicional exposição agropecuária no aniversário de Resende ou para uma apresentação no monumental teatro da Academia Militar com seus mais de 2.800 lugares. O pessoal na expectativa da vinda de Milton Nascimento e eu dizia que ele não viria mais e no seu lugar quem viria era o Nelson Ned. Ou que para Exposição não viria mais o Almir Sater ou o Renato Teixeira: “Houve uma troca, quem vem é Nelson Ned”. E ria da expressão de surpresa das pessoas. Pura molecagem, admito. Claro que logo em seguida, eu desmentia, mas valia pelo breve momento, quase anedótico.
Um dia anunciaram Gilberto Gil no teatrão da Academia. Eu vibrei. Não perderia por nenhuma hipótese o show. E então surge o imponderável para confirmar o mantra da infância. Eu trabalhava na Rádio Resende AM e, justo na noite de Gil na AMAN fui escalado para entrevistar uma das estrelas que se apresentaria em Itatiaia, era o aniversário da cidade vizinha. Odilon Farias, uma celebridade do meio radiofônico na região tinha dois programas diários na emissora e foi para o programa noturno, mais inimista, com músicas românticas, bregas, que eu fui escalado. E quem era esse grande nome que eu entrevistaria? Justamente, Nelson Ned. Claro que vocês dirão que foi castigo. Mas foi até gratificante. Dias depois eu falaria com minha mãe sobre o encontro.
Terminada a entrevista, Nelson foi para o palco. Odilon me dispensou e eu assisti ao show naquela noite surpreendente e muito, muito fria em Itatiaia. Um sucesso. O publicou vibrou com o pequeno grande cantor brasileiro. Voltei para Resende no início da madrugada e, próximo ao meu destino vi Gilberto Gil, sozinho, em frente à entrada do hotel River Park. Encorajado pelas doses do conhaque barato que tomara para suportar o frio de Itatiaia, fui ao seu encontro: “Grande Gil, não fui ao seu show”, e brinquei: “Fui ver Nelson Ned em Itatiaia”, e Gil respeitosamente disse: “Ah! Nelson Ned!”. Desfiz a brincadeira: “Fui a trabalho”. Gil riu com leveza. Conversamos rapidamente sobre seu show. Nos despedimos e ele entrou no hotel. Segui para casa ruminando os efeitos daquela noite surpreendente. Cheguei a crer que talvez estejamos presos a cordéis pelos os quais alguém, ou algo, direcione nossos passos, nosso destino. Pode ser. Por via das dúvidas, decidi nunca mais beber daquele conhaque ordinário.
“Se eu quiser falar com Deus Tenho que ficar a sós Tenho que apagar a luz Tenho que calar a voz Tenho que encontrar a paz Tenho que folgar os nós Dos sapatos, da gravata Dos desejos, dos receios” (Se eu quiser falar com Deus/Gilberto Gil)
Papo com Lais Amaral, Mariozinho Lago, Luana Oliveira, Eddie Bigorenski e Tuninho Galante.
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