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Kant: a Redenção da Beleza

 



Dormi muito cedo na noite passada, pra esquecer que não podia participar do ritual de ayahuasca que Benki conduziu no deserto do sul da California para 140 pessoas. Às quatro da manhã me encontro acordada, e antes de tentar dormir de novo, resolvi checar o iPhone. Tinha várias mensagens de Edgar, um sobrinho muito inteligente que eu tenho (prodígio, na verdade) e que estuda filosofia.


Eu havia mandado pra Edgar algumas recomendações de textos filosóficos e links de Youtube, porque ele operou o joelho e, estando de molho, tem tempo extra para ler.  Uma de minhas recomendações foi o pensamento de Kant sobre o julgamento estético; o Belo. Na troca com Edgar, tive que refrescar a memória em Kant, e isso foi a melhor coisa que pude fazer, já que não me foi possível, nessa mesma noite, transcender através de ayahuasca.

 

Quando estudei filosofia em Boston, Kant foi a redenção da minha vida. Pois na adolescência, eu era obrigada a ouvir repetidamente a doutrinação materialista de meu pai. Ele falava num tom de voz macio e ininterrupto, que não dava chance a ninguém abrir a boca. O cara era muito louco, pois fazia esculturas sacras com paixão e sempre dava a Cristo os traços de seu próprio rosto. Porém, parecia que, com o seu ateísmo obsessivo, ele se sentia obrigado a tirar o que devia considerar a “virgindade” mental dos filhos.


Citava exemplos biológicos e o cacete a quatro pra provar que nada que fosse além da matéria existia. Eu sentia quase fobia por aquilo, pois não queria ser parte de uma existência puramente material. O que papai dizia tinha em mim o efeito de querer provar que eu própria era uma mentira. Ao mesmo tempo, o meu auto-questionamento sobre a realidade espiritual era intenso por natureza. Mas com 14 anos, eu não conseguia por fim `a argumentação de papai, sem, por isso, deixar de crer em Deus. Quando finalmente comecei o curso de filosofia, me apeguei aos filósofos racionalistas, os quais, cada um a seu modo, pensavam provar a existência divina pela razão pura, a que se pretende independente da experiencia- já que Deus não pode ser objeto de experimentação cientifica e tampouco apreendido pelos cinco sentidos- contra os empiristas, que só acreditavam no que se podia aprender através desses mesmos sentidos, quer dizer, a posteriori.


Pra estes, a razão pura, essa que se propõe a verdades a priori, nem bem existe. Como a filosofia é um debate através do tempo, esse vai e vem da posição de um filósofo que dizia o que eu queria ouvir, para o outro que o negava, fez com que o meu curso, como uma montanha russa, se alternasse entre momentos de alívio e de quase pânico. Até que vim a estudar Kant. Este grande filósofo confessa ter sido racionalista até ler Hume, um empirista, e “acordar”.

Pois Hume não aceitava que a razão pudesse deduzir verdades a priori que pretendem anteceder a experiencia, ao pensar que a causalidade ao invés de ser uma lei, é contingente, pois a gente a aprende simplesmente por hábito ou por associações do que se observa quando uma coisa causa outra. Ele então  se pergunta: “O que me garante que o sol vai aparecer amanhã a não ser o hábito de vê-lo aparecer todo dia?”


 Kant viu que em parte Hume estava certo e em parte errado. Nem tanto ao mar, nem tanto `a terra. Não se pode provar a priori o efeito que resultará de uma determinada causa, mas Kant demonstrou que, na estrutura de nosso conhecimento, a noção de causalidade existe a priori, como uma lei que rege o nosso mundo, quer dizer, percebemos este mundo através desta noção, ou da cadeia temporal em que cada evento tem uma causa que também foi causada. E Kant decidiu que isso não quer dizer que a estrutura do nosso conhecimento é a chave da verdade.


Segundo ele, esta organiza o que vemos como realidade, mas ao contrário do que pensavam os racionalistas, está longe de poder atingir a verdade última, o “em si”, o absoluto; o elusivo divino. O “em si” é livre e não causado, e por isso não é relativo a nada. Kant, então, escreveu a Crítica da Razão Pura, e botou cada macaco no seu galho. Dizia, com a humildade que lhe era característica, que devia se livrar do conhecimento na busca da dimensão metafísica, para dar lugar a fé.


Ler toda a Crítica da Razão Pura e me apaixonar pelo pensamento de Kant foi a maior liberação que senti do compromisso de querer provas para a existência de Deus, do compromisso comigo mesma, na verdade, ou com a necessidade de curar a corrosão da lavagem mental que papai insistia fazer em nós.

 

A ideia de que o nosso entendimento (a faculdade que corresponde ao conhecimento racional e científico da realidade) não atinge a verdade última, coincide com o pensamento de Huxley, o qual, depois de tomar mescalina, teve, em suas palavras, uma visão sacramental da realidade e chegou `a conclusão de que portas da percepção nos são fechadas para que possamos agir em função da sobrevivência. Se tivéssemos a capacidade de perceber o divino, não sairíamos da contemplação, e a luta por sobreviver iria por água abaixo.  


Kant procede mostrando as falhas de todas as provas da existência de Deus apresentadas pelos filósofos racionalistas. Mas quanto ao conhecimento científico, enquanto ele aceita que a natureza é determinista por obedecer a lei da causalidade, encontra, na esfera da ética, a liberdade desse determinismo, quer dizer, o livre arbítrio. Para ele, todos nós temos a consciência do certo e do errado, e a liberdade de agir de acordo com a lei moral. O livre arbítrio nos dá o poder de fazer o bem. E nessa liberdade de poder agir independentemente de como nos determinariam o nosso instinto, egoísmo, paixões, nós transcendemos.


Na Critica do Julgamento, cujas reflexões sobre o Belo recomendei a Edgar, Kant lida com a estética, com o que faz com que certos julgamentos de beleza sejam universais (enquanto outros são questões de gosto pessoal). Por exemplo, a cachoeira que figurou no filme Jurassic Park é considerada bela universalmente, ao contrário de gostos que não se discutem, como quando se prefere a cor vermelha e outra pessoa a verde. Mas o universalismo, por ser uma abstração de todos os seres particulares e tangíveis, se associa ao intelecto e não ao sensível, tangível e visível como o Belo. Por isso, Kant considera quase milagroso o fato de que este seja universal e não descanse sobre teorias, nem explicações, e nem leis.


O julgamento reflexivo (ou contemplativo) está no reconhecimento do Belo, enquanto o intelectual depende do entendimento ou do discurso racional. Assim, Kant contrasta a maneira como um cientista em busca do conhecimento olha pra natureza, com a maneira como se olha para esta contemplativamente e se vê o “em si” (o divino) em sua beleza, chegando-se então à experiencia do sublime. Tal experiencia se dá quando, ao apreciarmos o Belo, que se transmite livre da lei da causalidade e da utilidade, o apreciamos como um fim “em si”, que nos mostra o mais profundo de nós mesmos: a liberdade ética da condição humana. A experiencia do Belo é um maravilhamento, e a do sublime, um passo adiante, consiste no reconhecimento da liberdade esmagadora que o Belo nos mostra ao nos fazer enxergar a grandeza da nossa condição humana ao poder escolher fazer o bem.


De acordo com Kant, a experiencia da beleza cala todas as nossas questões e nossos medos.  Através dela, diferentemente do que sucede na vida trivial, quando o nosso entendimento intelectual e a nossa imaginação se conflitam, estas mesmas faculdades então se harmonizam: O intelecto se sente satisfeito de não precisar entender ou discursar, e a imaginação não encontra limites. Além disso, Kant mantem que ficamos em unidade com tudo aquilo que nos rodeia. A contemplação da beleza, em outras palavras, é sempre uma epifania.


 E se parece absurdo discorrer sobre o Belo num mundo cheio de tragedias, é bom nos lembrar que a harmonia que a contemplação deste nos traz, e a comunhão com o que nos rodeia, transcendem a realidade fatual. Nada nos deve impedir de fazer o bem, mas nada nos deve fazer ignorar que o Bem e o Belo andam de mãos juntas. O Belo nos leva `a lembrança de que somos livres para o Bem, e no assumir dessa liberdade com a enorme responsabilidade a que dá origem, experimentamos o sublime. Não é de se admirar ter dito John Miur, que o homem precisa da beleza tanto quanto do pão que o alimenta.


Tenho contribuído na ajuda ao Rio Grande do Sul, à Palestina e às caridades destinadas aos infortúnios no planeta, mas não deixo de acreditar que cada reconhecimento das realidades que nos transcendem atua, mesmo que de modo indireto, como quando rezamos, na realidade fatual. Esse reconhecimento, eu diria, que assim como Picasso pensava sobre sua atividade artística, exorciza.


Imannuel Kant, enquanto lembrança de uma eterna redenção, fundamentou muitos rituais de ayahuasca em que participei e muitos a que não pude ir.



 

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