Lembranças
Minhas lembranças mais antigas de entretenimento (lembrando que eu só vim ao mundo em 1968) são do carnaval de 1972. Não lembro exatamente de nada, claro, mas ouvi muito “Ilu Ayê” e “Alô Alô, Taí Carmen Miranda”, os dois sambas de Madureira pro carnaval do grupo especial daquele ano. Essas coisas ficam na memória. Ainda bem. Gosto muito dos dois sambas até hoje. Pequenos, simples, objetivos e marcantes. Muito depois eu aprendi outros sambas ótimos, anteriores e posteriores a 1972. Há até uma lenda doméstica de que eu teria aprendido a falar cantando o “Lendas e Mistérios da Amazônia”, da Portela de 1970. Eu reproduzo a lenda, mas não posso garantir que tenha sido assim mesmo. E sigo achando que toda criança brasileira nascida nos anos 60 ou início dos 70 aprendia primeiro a falar “Pelé”!
No futebol, outro marcador importante na formação da minha geração, minhas memórias mais antigas vêm da queda do Brasil na copa de 1974. Aprendi a entender o que se passava em volta de mim com o Brasil vivendo a euforia futebolística pós-70, quando em nenhum lugar deste mundo - ou de outros - poderia se supor que alguém jogasse melhor futebol que aquele. Holanda e Alemanha provaram o contrário (e olha que a Polônia, do Lato, também era osso duro de roer).
Mas cresci sem grandes decepções, ouvindo o futebol de domingo na Globo, ao menos até 1982, quando aconteceu o maior trauma pós 1950 e a seleção mais querida caiu feio diante da Itália, no que foi o quase final definitivo do futebol arte. Eu tinha 14 anos incompletos e lamentei como se tivesse morrido um parente. Passei a ter dificuldades pra comemorar os triunfos depois daquele fracasso. Não se pode negar que depois do que se chamou de “fim” ainda houve Maradona, Romário e Bebeto, Ronaldinho Gaúcho, Zidane, Ronaldo Fenômeno e outros, até desembocar no Neymar de hoje, passando (e ficando!) no Messi, no CR7 e outros caras verdadeiramente bons de bola. Outra coisa que me marcou muito, ainda dentro das quatro linhas, foi o título do Guarani de 1978. É o único time campeão do qual ainda lembro a escalação inteira, sem contar o Flamengo do Jorge Jesus, bem mais recente, e incluindo as seleções todas. Mas a ideia não é discutir futebol, é falar de lembranças.
Gosto de imaginar que as crianças que cresceram após o fim da ditadura e mais precisamente no início dos governos de esquerda, tendem a ser pessoas melhores no futuro. Vivemos momentos de maior solidariedade. A própria redução - pequena, mas real - dos índices de desigualdade, aproximou as crianças da classe média, normalmente criadas em redomas, dos mais pobres. Não posso nem afirmar que isso seja uma realidade, mas gosto de pensar assim. Assim como gosto de pensar que os jovens universitários da geração das cotas, fossem cotistas ou não, tiveram acesso a um ambiente universitário mais saudável do que o anterior, marcadamente excludente, quase exclusivo.
A reação desmedida da elite brasileira que resultou no golpe de 2016 após a capitalização por eles dos movimentos de rua iniciados em 2013 teve muitos objetivos. Pra além das sempre repetidas máximas de que a elite não aguentava mais empregadas na Disney e pobres na universidade, além da conversão dos aeroportos em paradas de ônibus suburbanos, o que houve me parece ter sido uma reação contra a construção de memórias de algum tempo melhor. Era fundamental construir uma narrativa (palavra que se tornou insuportável! Eca!) que não deixasse dúvida sobre o que seria bom pra todos. E não poderia ser, nem de longe, algum utópico projeto de solidariedade e inclusão propagado pela “esquerda sonhadora”, mesmo com o Centrão agarrado nela e uma desatenção flagrante a episódios de corrupção.
Era fundamental dizer que não se pagou – ou não se devia ter pago de jeito nenhum - a dívida externa, que o bolsa família era esmola, que os cotistas eram maus alunos, que os comunistas estavam dominando tudo e que novos heróis viriam nos salvar do monstro vermelho. E que estávamos pagando obras pros outros e não exportando tecnologia, inovação e nossas empresas, de renomada e comprovada capacidade em megaobras anteriores, como a Usina de Três Gargantas na China e quilômetros e quilômetros de estradas no deserto, no Oriente Médio. Tudo de bom que ocorreu antes era, na verdade, ruim. Aquele bife, lembra? Era falso! Aquele carro? Era uma miragem! Você sonhou com aquele apartamentinho do “Minha Casa, Minha Vida” e com aquela graninha do Bolsa Família. Era o diabo atentando você e tentando te levar pro comunismo.
Algumas crianças devem ter ouvido isso e, traumatizadas, levarão lembranças dramáticas para o resto de suas infelizes vidas. Coitadas.
A minha geração se orgulhava do futebol, que hoje já não encanta tanto. O futebol meramente empresarial tirou muito do brilho da brincadeira. Nossos melhores garotos - e também nossas meninas mais talentosas - no esporte vão embora cedo enriquecer nos gramados do mundo. Esse monte de coisas paralelas, Cartola, Sports Bet, Bet qualquer coisa, parece mais animado que o esporte em si.
De criança, eu não trouxe memórias da ditadura. A ditadura era dura, mas não era midiática, ao contrário. Fazia desfiles no 7 de setembro, mas reprimia e torturava às escondidas. A única face mais ou menos visível era o cartaz da censura no início dos programas de TV. Mesmo a Moral e Cívica e OSPB na escola, que eram chatas, não eram insuportáveis e nem escandalosas. Obrigatórias, nunca fizeram aquele sucesso de público e crítica reservado às aulas de Educação Física, por exemplo.
O presente ultramidiático, com a imprensa profissional tendo cedido lugar aos produtores independentes de notícias customizadas - inclusive quanto à veracidade!!! - promete deixar marcas. Ainda não me acostumei com o tempo em que cada um conta a sua história, pouco importando se ela é real ou fictícia. Preferia isso na literatura ou no cinema. E ficção e não-ficção ficavam em prateleiras diferentes.
Não sou de sentir saudades. Gosto da máxima do Paulinho da Viola, trazida do Wilson Batista, que diz que “meu tempo é hoje”. O meu também é. A pura nostalgia não leva a canto nenhum. Mas vivo muito preocupado com as lembranças futuras de quem está começando a sistematizar memórias agora... As minhas vieram pela mídia do meu tempo e estão muito ligadas a carnaval e futebol. Nelas não tem presidente, filho de presidente, mulher de presidente, tesoureiro de presidente, advogado de presidente, motociata, nada disso.
Só desejo que as crianças de hoje, quando adultas, lembrem-se disso como um passado remoto e uma piada de muito mau gosto. Ou que se lembrem de esquecer. Ninguém merece um passado desses.
Vai que carnaval e futebol voltem a ser inesquecíveis??
Rio de Janeiro, junho de 2022.
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