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Foto do escritorLéo Viana

Lucinha




- As pessoas imaginam, Pardon, que existimos para prender os criminosos e obter suas confissões. É mais uma das tantas ideias falsas que circulam por aí e às quais as pessoas se habituam de tal modo que ninguém pensa em verificar. Em realidade, nossa principal função é proteger o Estado, em primeiro lugar o governo, seja ele qual for, as instituições, depois a moeda e os bens públicos, dos particulares, e só então, por último, a vida dos indivíduos…


Lucinha mal tinha começado a leitura de “Maigret e o Ladrão Preguiçoso”, livro que achou por acaso num sebo do centro da cidade, quando deu com o parágrafo acima. Nada sabia sobre Georges Simenon, o escritor belga que criou o complexo personagem Jules Maigret, comissário da polícia de Paris que utilizava métodos nada ortodoxos pra resolver crimes numa cidade infestada de ladrões, cafetões, assassinos e gente de todo tipo, com e sem escrúpulos. O livro, ela descobriu na ficha, foi originalmente publicado em 1961, quando nem a mãe dela tinha nascido ainda.

Ela, Lucinha, tinha entrado pra polícia carioca aos 20 anos, havia pouco. Enviada como soldado pra uma UPP, aquela iniciativa tosca de atribuir à polícia a responsabilidade sobre a solução dos problemas da população mais necessitada de todos os serviços, nunca tinha pensado como Simenon escreveu. Nunca tinha ouvido falar em Simenon e só pegou o livro porque achou o título engraçado. Um ladrão preguiçoso era mais ou menos o sonho de qualquer policial.


Playlist de Samba, no Youtube.


Tinha sido boa aluna até. Com as limitações normais de quem estuda em escola pública, de bairro. Só lia livro didático e alguma literatura brasileira que a escola recomendava. A leitura nunca fora entretenimento.


E Lucinha entrara na polícia com a melhor das intenções. Quando já não via possibilidade de emprego público, com os sucessivos cortes previstos e efetuados no tamanho da chamada “máquina estatal”, fez o concurso para a corporação, dos poucos que ainda ocorriam regularmente. Imaginava o salário enxuto no fim do mês para custear a faculdade. E como sempre vira policiais mulheres principalmente no trânsito, achou que seria essa a função a desempenhar na polícia. Mas foi parar numa comunidade ocupada, empunhando um fuzil e tendo que, em simultâneo, passar confiança para aquela gente assustada. Vinha da periferia. Jamais confiaria em alguém que portasse um fuzil. Agora protagonizava a cena.

Quando criança, na periferia, aprendera a temer a polícia. Entendia que muita gente de seu entorno tinha feito coisa errada e isso justificava o medo que herdara dos mais velhos. Adolescente, resolveu mirar-se no exemplo e combater os erros. Faltava a ela definir exatamente que erros eram esses. Herdou também a certeza de que os erros eram todos aqueles que atentavam contra a moral vigente. Beber, fumar, usar drogas, falar palavrões, fazer muito sexo. Podiam não ser crimes, como roubar e matar, mas eram “coisas erradas”. Algumas delas a polícia não combatia, o que causava um redemoinho em sua mente de adolescente. Adulta, decidiu entrar para a polícia após perceber que grande parte da sua geração tinha tido problemas com ela. Talvez, por dentro, entendesse o que acontecia de fato. A escola a ensinou a respeitar as forças de segurança, não necessariamente temê-las. Mas a realidade apontava em direção contrária. Como não temer? Crescera sob a sombra da lembrança de chacinas cometidas por policiais, via todos os dias na televisão crimes cometidos por quem deveria zelar, em sua lógica quase pueril, pela segurança coletiva.


Agora, dentro da polícia, não podia questionar muito, mas queria saber. As instituições militares – ou paramilitares, no caso – são assim. A rigidez da hierarquia é um fundamento e impede o questionamento de ordens superiores. Não chegou a receber, diretamente, ordens absurdas. O conjunto das situações que testemunhou, no entanto, parecia apontar em direção diferente daquilo em que acreditava.


Roda de Samba, no Spotify.


Durante a formação de soldado, aprendeu a discriminar as pessoas a partir de sua aparência, do modo como se vestiam ou caminhavam. E os modos “suspeitos” eram absolutamente familiares a ela. Verdade que nenhum dos instrutores recomendou o uso indiscriminado de força bruta, mas percebia que as entrelinhas pareciam apontar mais para a defesa da norma vigente, contra o diferente a partir de uma certa concepção que era diferente da dela. Pane na cabeça de Lucinha.


O primeiro antidepressivo foi antes do primeiro tiroteio. Na ocasião, os traficantes atiraram primeiro. Afastada logo da linha de frente, foi enviada à UPP. O trabalho tinha um quê de simpático, lidava com a juventude, com os sonhos de uma garotada desprovida de muita coisa. Com a “pacificação”, poderiam ao menos sonhar com a integração à cidade formal, o acesso ao que todos os outros tinham.


A realidade, no entanto, se impôs. Lucinha ouviu muitos relatos de discriminação e segregação. Cenas que se repetiam em lojas, clubes, praias, escolas, geralmente com o aval e mesmo o incentivo da polícia. O buraco era muito mais embaixo.

Até que leu o que o Simenon escreveu, pelas palavras do comissário Maigret, falando a seu único confidente, um médico vizinho, o Dr. Pardon.


- Benditos personagens da ficção!, pensou com seus botões.

Concluiu ali que perdera muito tempo na vida ao não dar a atenção devida à literatura. Vai pedir baixa da polícia. Não gosta de usar armas. Não quer ser a guardiã do Estado e dos bens dos que têm mais. Eles já são suficientemente protegidos. Inscreveu-se no ENEM, por via das dúvidas. Português-Literatura. Nunca é tarde, afinal, para corrigir o que se fez errado. E ela ainda é uma menina.


Por enquanto, num sebo da Praça Tiradentes, comprou vários livrinhos do Simenon.

E vai lendo no metrô.


Rio de Janeiro, setembro de 2022.


 

Música.

Cantoras.




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