MANIA
O Ivan era terrível. Não pelo mesmo motivo de seu xará russo, o primeiro Czar. Não matava ninguém com crueldade ou ameaçava os inimigos, como os russos, aliás, procuram manter a tradição. Ivanzinho, o contemporâneo, era chato. Muito chato. Com muito boa vontade, coisa que ninguém tinha com o Ivan, dir-se-ia que seria um híbrido mal terminado de Linnaeus com Descartes, mesmo sem ter se dedicado profundamente às obras de um ou outro. Tinha a mania de classificar tudo, como um Linnaeus de meia tigela, partindo de impressões muito particulares, ao contrário do sueco que deu nome pra quase tudo que se mexe ou tem folhas. E não entendia nada sem enquadrar, sistematizar, ainda que de modo também bem particular, sem os critérios que normalmente norteariam qualquer organização racional. Pois bem. Foi assim, no intervalo que há entre a razão e todas as outras coisas, que o Ivan encontrou a Bia.
A Bia era o avesso do Ivan. Ela branca, ele preto. Ela alta, ele baixo. Ela magra, ele gorducho. Ela Sheppard, ele Silva.
A mania de organização do Ivan era mais que um mero TOC. Tinha cadastrados, em ordens diversas (quando viu, por qual meio, ordem de preferência), todos os filmes a que assistiu desde os quinze anos de idade. Fazia o mesmo com livros, discos, lugares, pessoas, variando somente nos detalhes para estabelecer uma hierarquia.
A Bia era absolutamente relax. Não tinha preocupações quantitativas e mesmo as qualitativas eram poucas. Trabalhavam no mesmo escritório de contabilidade. O Ivan era contador sênior e a Bia era do RH.
O primeiro encontro se deu quando Ivan decidiu pedir férias, depois de quatro anos sem se ausentar do trabalho por nada. Obviamente não tinha quem o aturasse em casa, vivia sozinho. As rotinas incluíam um cinema nos sábados à tarde e muita perda de tempo classificando coisas. Quando a sistematização fugiu levemente do controle, foi ao RH para marcar as férias. Usaria o tempo para rever alguns critérios, organizar coleções, iniciar novas, ver outros filmes. Tinha já um esboço das atividades e uma ideia do tempo que dedicaria a cada uma.
Foi atendido pela Bia. Não costumava ir ao RH. Pouco participava de reuniões. Era temido e evitado por quase todos no escritório. Não era de conversar muito, mas se exaltava fácil ante qualquer desorganização, ainda que não tivesse nada o que ver com aquilo. Uma caneta fora de lugar na mesa de alguém, uma folha de papel sem função aparente. A Bia era leve, relaxada no último grau. A mesa vazia não era sinal de organização, era acaso. Mas o Ivan se encantou mais pela mesa sem defeitos visíveis do que pela muito visível Bia, do alto de seu metro e quase oitenta, seus olhos claros e cabelos louros esvoaçantes. A Bia sabia de seus encantos, mas não era uma pessoa que se aproveitasse disso. Gostava mesmo era de tomar cerveja com a turma do trabalho, jogar futebol na praia no fim de semana, nadar no mar, fazer trilhas. A saúde excepcional permitia que ela mantivesse aquela pele de porcelana mesmo submetendo o corpo a essa quantidade de atividades, nem todas muito saudáveis strictu sensu. O Ivan não sabia de nada disso. Em sua classificação, Bia acabava de ser inserida como “organizada”. Era o degrau mais alto em sua hierarquia. Não conhecia outro funcionário ou funcionária, em seu círculo obtuso de observações, que tivesse chegado a esse patamar.
Bia o atendeu corretamente. Espantou-se com as férias não gozadas do Ivan, mas não quis puxar assunto a respeito. Já ouvira falar do contador sênior que não gostava de conversa. Acabou achando o Ivan simpático. Ele não expressou em palavras a admiração que sentiu pela mesa organizada, mas dirigiu à Bia olhares lânguidos de admirador. Era a primeira vez que se comportava assim, pensou. E se sentiu ridículo. Corrigiu a postura na cadeira e tratou com cordialidade a – agora até notara – bela moça que o atendeu e lhe passou o memorando de férias.
As férias foram exatamente como planejara. Anotou novos vizinhos, percebeu que havia novos cachorros na vizinhança (anotava os latidos e supunha o tamanho do cão pelo som que emitia. Quando encontrava na rua, tentava relacionar animais e latidos), assistiu a diversos filmes, fez anotações sobre eles, anotou quais árvores da praça próxima estavam em melhor estado, quais floriram, quais frutificaram, quais estavam doentes. Notou um novo ninho de maritacas num coqueiro de um jardim próximo e dedicou um bom tempo à classificação dos funcionários que conhecia no escritório. Havia os altos e os baixos, os falantes e os calados, os mais ou menos competentes. Nenhum deles merecera, até ali, sua admiração pela organização. Bia era mesmo surpreendente.
A única classificação física que fazia era aquela relacionada à altura. E na volta para o escritório, imediatamente lembrou de incluir Bia entre os altos. Tinha ficado fascinado pela organização e não notara essa outra característica da moça.
Não tardou e deu de cara com ela no café. Normalmente não frequentava mas, ainda em clima de volta de férias, resolveu ver se algo havia mudado no escritório em que trabalhava há tantos anos. Assim como não notara antes a Bia, que já tinha três anos na casa, poderia ter deixado de notar alguma outra pessoa e mesmo – quem sabe – alguém que merecesse a classificação máxima em seus critérios. Ao chegar, percebeu um burburinho que quase o desanimou. Havia gente demais no café, um falatório de que não gostava. Se sentia incomodado com muita coisa e só não havia se demitido do escritório ainda porque o fundador, amigo de seu pai, tinha lhe dado o emprego em confiança logo que saiu da universidade, sabedor que era das dificuldades de socialização do Ivanzinho.
Ao entrar na pequena copa, surpreendeu-se ao ver a Bia, altíssima e ainda mais elevada pelo scarpin preto que a separava do chão, abraçada a uma pilha disforme de papéis, falando ao celular apertado entre o ombro e a orelha esquerda, rindo de uma piada contada por um dos advogados, com uma xícara de café equilibrada nos dedos da mão direita e uma improvável caneta na orelha direita.
Nem pegou o café. Correu até a mesa da Bia no RH.
Diversas canetas, papéis espalhados, uma xícara suja, um batom e uma caixa vazia de achocolatado.
Tremeu. Chorou até, o Ivan. Tinha comprado um bloco de notas e decidido ceder a sua licença do Excell para a Bia se manter organizada, mas ela não merecia mais. Falsa!!!
Era terrível, o Ivan.
Rio de Janeiro, julho de 2023.
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