Memórias de um Cachorrinho Maduro
- Eleonora Duvivier
- 1 de mar.
- 6 min de leitura

Quando cheguei do veterinário com o funil em volta do pescoço, não lembrava de nada. Nem sei porque me levaram lá. Mas ouvi “mamãe” (esse é o nome com que o Chris e Tweety chamam ela) dizer que eu estava mais desorientado do que quando comi uma pílula de maconha. Eu era ainda um filhote, todo feliz só de ser eu e poder correr, cheirar todo mundo, e comer o que via no caminho. Não existia perigo para mim. Tudo que eu podia ver só existia pra brincar comigo. Pra eu fazer bagunça.
Eu me atirava na rua me esgueirando fora da casa quando abriam a porta pra alguém, e mamãe ficava louca tentando me pegar. Dizia que eu escorregava igual a seda, e era rápido como um coelho. Eu não entendia por que ela não me deixava correr até o infinito. E nem me divertir caçando os carros que passavam. Gritava que iam me atropelar. Uma vez, eu já ia longe na calçada, e ela teve que se atirar em cima de mim pra conseguir me pegar. Gritou que por causa disso tinha machucado o joelho no cimento, “que merda seu maluco” ela falou e continuou dizendo “ai” até poder ficar em pé enquanto segurava a minha coleira pra me levar de volta. Eu gostava da minha casa, mas o mundo inteiro era meu e não tinha fim.
Achei a pílula de maconha no chão do banheiro. Colou na minha língua e eu engoli ela. Voltei pro quarto e mamãe ficou me beijando e abraçando. Ela estava descansando naquela cama enorme que tem e conversando com a minha querida Tweety. Diziam que eu era igual a um tal de Stitch, do filme que viram chamado Lilo e Stitch. Que eu fazia barulhos igual ao Stitch, que eu era super teimoso e que vinha de outro planeta. De repente, fui ficando super mole enquanto elas falavam. Parecia que eu estava voltando pra ninhada em que nasci, pra pele quente da teta que eu mais gostava, e daí eu esqueci quem eu era.
Mamãe tinha cozinhado uma coisa e deixou Tweety botar um pedaço na minha frente. Mas nem cheiro, eu sentia. Tweety me dizia que era rosbife e que eu ia adorar. Mas eu não podia mais ficar em pé e minhas pernas foram escorregando pros lados. Minha família ficou toda assustada. “Ele ta tendo um ataque de nervos!” gritou o pai de Tweety. “Meu Deus, o que ta acontecendo?” ela dizia. No meio da gritaria, mamãe mandou eles me levarem pro veterinário com urgência. Já era noite, e Tweety mandou o pai dela dirigir. Quando chegamos, o veterinário me levou pra uma sala e espetou uma agulha em mim. Quando saímos de la ele disse pro pai da Tweety que eu estava cheio de canabis. O pai ficou com vergonha e dizia que aquilo não era possível, que a gente só fumava e não tinha pílula nenhuma que eu pudesse comer.
O veterinário respondeu que não estava interessado naquela “indústria” e só queria fazer o seu trabalho. Quando voltei pra casa passei dois dias jogado no sofá e vendo o passado. Vi como eu mamava e devia ficar com cara de bobo. O pai de Tweety estava com medo que eu tivesse, como que é a palavra? “Danificado”, eu acho. Mas “mamãe” entendeu que eu estava de volta pra origem.
Numa outra noite, comi um chocolate desembrulhado que encontrei na cama da Tweety. O gosto era bom, mas fiquei muito nervoso. Quando Tweety viu a embalagem rasgada e só dois pedacinhos do chocolate que ficaram espalhados na cama dela, ficou apavorada, dizendo que aquele chocolate era de cogumelo mágico, que eu era um “drug head” e sei la mais o que. Me enfiou no carro dela e me levou pra outro veterinário de emergência. Só contou pra ele que eu tinha comido muito chocolate, mas o cara disse que os meus olhos estavam dilatados. Tudo parecia enorme e confuso. Aquelas luzes brancas estavam me assustando. Me deram uma injeção de uma coisa lá que devia ajudar a absorver o chocolate. Ainda disseram que chocolate pode até envenenar cachorro. Mas tudo ainda era uma festa pra mim. Mamãe dizia que eu era um garotinho! Ela dizia que adorava a minha infância, assim mesmo, “a minha infância”. Pra eu sempre ser um cachorrinho.
Só naquela casa lá no alto das montanhas, eu aprendi que o perigo existe. La, tinha um carro de golfe de um amigo do Chris que morava na casa com outros amigos. Muitas vezes, Chris buscava mamãe e eu pra visitar. O amigo tinha umas cachorras muito chatas, burras e grandes. Eram mistura de lobo e cachorros e enchiam o saco de todo mundo. Eu sou um Cavalier King Charles, da raça da Lady, em A Dama e o Vagabundo. Sou muito orgulhoso e importante, então não tenho saco pra cachorro, só pras pessoas. Eu rosnava pra aquelas chatas e mamãe me afastava delas.
Um dia, fui passear com Chris e mamãe no carro de golfe, e elas foram correndo atras. Chris foi até um gramado muito verde e ficou brincando com elas de jogar uma bola pra elas apanharem. Na volta, eu achei que se elas podiam vir correndo, eu também podia, e pulei fora do carro. Chris me viu primeiro, imóvel no meio das plantas. Que susto eles e eu levamos. Me botaram de novo no carro e dessa vez no colo da mamãe, que me segurou bem firme. Mas eu ainda estava tremendo quando chegamos na casa do cara. Mamãe ficou com pena, ela achava que eu estava muito nervoso. Não sabia que eu não tinha ideia do que fazia porque o mundo ainda era todinho meu, e fiquei nervoso quando vi que o perigo às vezes fica dono dele.
Quando mudamos pra California, fiquei perdidão durante um tempo. Não sabia onde era o meu lugar nesta casa. Boulder fica entre as montanhas, mas aqui é tudo muito aberto e grande e eu parecia flutuar nos lugares. Nem gosto de ir na praia do cachorro, a única em que posso ir. Já falei que não tenho saco pra cachorro. Gosto é de latir pra eles quando mamãe me leva na coleira pra passear e faz eu me sentir enorme. Outro dia, passou um dinamarquês que um casal levava na coleira dele e eu virei uma fera; botei a boca no mundo. Ele nem respondeu porque ficou com medo de mim.
O que eu gosto mais é de sair de carro com o Chris. Eu amo o Chris. Quando mamãe ficou uns dias no Brasil, ele me levou até pra surfar. Ele me trata de homem pra homem e eu fico muito orgulhoso. Nem ligo que a Maya seja o cão dele número um e resolvi que o meu dono é ele. Sei que mamãe me entende. Mas Chris está no Havaí há um tempão, e levou a Maya. No começo, eu achava que ele só tinha ido ao parque de cachorro com ela e ficava esperando ele voltar, deitado perto da porta da rua. Mamãe tentava me trazer pro quarto dela, vinha conversar comigo, dizia pra eu não ficar deprimido. “Esse cachorro é muito emocional” ela já disse mil vezes de mim. Quando Tweety visita, me anima um pouco. Eu gosto muito dela, mas me anima ela chegar porque aí eu penso que Chris também pode chegar de repente.
Depois de uns dias, fiquei amigo do mestre de obras que está consertando a casa. Ele também brinca comigo, e a mulher dele traz pra mim um negócio branco e docinho do Starbucks. Eu amo coisa doce. A doçura faz o mundo ser meu de novo. Depois que voltei do veterinário dessa vez, com esse cone ridículo em volta do meu pescoço, não consegui beber água por dois dias. Então, mamãe botou açúcar na minha água e eu bebi. Mais tarde, a mulher do mestre de obras chegou do Starbucks com o meu petisco. Aí, eu entendi que de vez em quando, o mundo ainda pode ser todo meu. Senti que todos que eu amo moram naquele gosto bom que vira parte de mim.
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