Memórias de um cachorrinho Maduro (2)
- Eleonora Duvivier
- 22 de mar.
- 5 min de leitura

Tô livre daquele funil em volta do meu pescoço. Eu não podia saber onde eu cabia. Às vezes, tentava entrar por uma porta meio aberta, e o funil não passava. Eu ficava parado sem entender nada e a mamãe abria mais a porta pra mim. Ela disse pra Tweety que eu estava me portando muito bem com o funil. Deve ser porque eu não suporto coisas que me limitem, mas não conseguia tirar aquilo. Quando eu era pequeno e Tweety me fechava dentro do banheiro dela, eu arranhava a porta e até a parede. Fiz até um buraco na parede daquele banheiro de tanto arranhar. Uma vez, eu consegui subir numas prateleiras baixas daquele banheiro e aproveitei pra lamber todinho um remédio que tinha derramado porque era uma delícia e vermelhinho. Quando mamãe viu, ligou pra Tweety pra perguntar o que era aquilo e quando soube que era Tylenol correu comigo pro veterinário. Mas o remédio não me mandou de volta pra quando eu era um bebê, como a tal da maconha fez.
Até hoje, quando me deixam em casa sozinho, eu fico arranhando a porta até cansar. Ninguém tem o direito de me prender e deixar pra trás. Mas eles achavam que eu não aprendia a me comportar porque não aceitava aquilo e nem sabiam como eu sou inteligente. Sou discreto e reservado, mostro tudo no silencio e no amor. Não saio por aí me mostrando com bobagens que as pessoas ensinam cachorros a fazer. Acho que por isso não tenho saco pra cachorro, vou direto pras pessoas.
Tweety sempre falou que eu sei quando ela está deprimida e vou pra perto dela. Vou sim dar força pra ela. Eles acabam vendo que eu entendo tudo. Hoje, mamãe falou que eu sou um gênio. Ela foi mostrar pro Charlie, o mestre de obras, a nova cama japonesa que eu ganhei pra repartir com ela no nosso quarto. Eu vi que era pra mostrar porque o Charlie foi quem tirou a cama velha pra dar lugar para a nova, então estava na cara que ele queria ver como ficou. Passei na frente da mamãe e pulei na cama todo orgulhoso. Dei uns latidos de vencedor pro Charlie entender que eu que estava mostrando a minha cama, e que eu já estava muito mais importante e quis que ele visse que a cama é minha antes da mamãe abrir a boca. Mamãe falou toda admirada, “Olha que gracinha! Ele percebeu tudo!” e o Charlie concordou.
Com a Jenny, mulher do Charlie, eu também fui mostrar a cama passando na frente dela e da mamãe. Eu meio que paquero a Jenny porque ela é mulher do Charlie, e o Charlie me trata de homem pra homem, ele é meu amigão. Então acho a Jenny mais bacana que outras mulheres. Ela e as namoradas do Chris, é claro. Só essas que são atraentes pra mim. Pra mostrar pra Jenny, eu pulei na cama, mas não lati me promovendo. Fiquei mais é convidando ela pra sentar do meu lado. Mamãe riu porque a minha voz fazia sons diferentes e finos. “Olha como ele é vocal, que amor!” ela dizia pra Jenny.
Outra coisa que aprendi sem nem precisar que me treinassem é que de noite eu não posso mais ir no quintal sozinho. No dia que mamãe viu um coiote lá fora na rua cruzando o nosso caminho, eu entendi tudo. Naquela noite, aceitei muito bem ir de coleira pro quintal. Eu antes ia sozinho e levava o tempo que queria. Mamãe agora me leva só pra eu fazer pipi antes de dormir, e eu faço logo pra ela não ter que ficar lá fora mofando e morrendo de medo, apontando uma lanterna nas arvores e plantas como se o coiote estivesse escondido ali. Os coiotes resolveram entrar no quintal de umas pessoas por aqui porque eles são uns marginais.
Esse lugar é muito selvagem pra mim. Eu sou mais é de cidade. Quando eu fui a SF e fiquei com a mamãe num hotel que aceitava “pets”, me diverti muito. Nem liguei que o Chris foi com a Maya pra outro hotel que pagaram pra eles. Mamãe quis ficar perto do tal Union Square e dos cafés. A gente saia de manhã pra ela ir tomar café depois de me dar a minha comida no banheiro dizendo pra eu me segurar que já ia pra rua pra poder fazer pipi. Eu não sou mais um bebê e me seguro muito bem. Então a gente ia naquelas ruas super cheias e todo mundo prestava atenção em mim. Bem que eu sacava que eu era uma celebridade e o movimento em volta de mim era tanto que eu nem sabia pra onde me virar. As pessoas paravam, perguntavam sobre a minha raça, aí a mamãe contava a estória toda do tal King Charles, e dizia que essa raça é conhecida como esponja de amor. Ela me diz que se eu fui feito “pro amor” isso prova que este mundo é bom por dar lugar pra seres como eu.
Lá em San Francisco me diverti tanto andando naquelas ruas cheias que nem sabia onde estava indo. Mamãe dizia que eu estava igual a um pinball. Mas eu tinha que ver tudo naquela vida da calçada cheia de poeira, cheiros diferentes, papeis rolando no vento e restos de comida no chão. E mil pessoas andando em tudo que é direção. Eu ficava o dia inteiro sem fazer pipi pra não ter que parar. Um dia, vi um cara sentado na calçada e comendo de uma latinha. Tentei ir repartir com ele aquela comida mas vi uns grãos de arroz que caíram na calçada e meti a cara. A Ta, sobrinha da mamãe que mora por lá, achou que ia rolar uma briga mas o cara nem sacou.
De noite, quando mamãe conversa comigo, ela diz que eu fiquei mais “introvertidinho” e aí continua “ mas pode deixar que eu saco você e eu presto atenção em você.”
Eu gosto muito de papear com ela. Vejo que ela me conhece, mesmo que me trate como um bebê. Outro dia ela falou “estamos de volta ao princípio, eu e você, quando você era um filhotinho e era a minha ancora.” Isso porque ela dizia que amava a minha “infância” e eu ainda não tinha me mudado pro Chris.
Eu sei que ela gosta mais de mim do que da minha infância e por isso achou até bonito eu me mudar pro Chris, mesmo me querendo de volta. Ela diz que acha lindo eu ser um cachorro apaixonado. Que eu tenho “livre arbítrio” seja lá o que é isso.
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