top of page
criativos 2022.png

METADE DA CAMA

Foto do escritor: Leo VianaLeo Viana


A cama de casal, onde dormia sozinha desde muito, estava dividida ao meio. Do lado esquerdo, normalmente só ocupado quando algum pesadelo a fazia rolar involuntariamente, amontoavam-se fantasias coloridas. As duas que usaria nas escolas de samba no sambódromo e na Intendente Magalhães e os diversos badulaques, entrebijuterias, acessórios, máscaras, shorts, saias curtas, maiôs, chapéus, tops, sacos de purpurina, confetes e serpentinas que usaria nos diversos blocos de carnaval pelas ruas quentes do Rio, desde janeiro até às proximidades da Páscoa, com ênfase em fevereiro ou eventualmente em março, como neste 2025 escaldante.


A Cíntia esperava o carnaval com a ansiedade dos bebês que mamam, das mães que esperam os filhos voltarem da rua, do trabalhador no dia 30 do mês. E o seu mês favorito nem tem 30 dias.

A vida da Cíntia se dividia em partes desiguais. Eram o carnaval e o resto. Mas nem sempre foi assim.


Carioca do subúrbio, a Cíntia tinha sido criada pra ser “séria”. Pai e mãe não admitiam roupa curta, decote, calcinha pequena, sandália aberta, calça comprida, brincadeira com meninos, amigas que fizessem as coisas que ela não podia fazer. O rol de proibições era enorme. A Cíntia por pouco não foi proibida de estudar, porque não havia como saber quem dividiria a sala de aulas com ela. Os vizinhos precisaram insistir muito com os pais pra garantir que frequentar a escola seria melhor pra ela. A pequena era estudante empolgada, sabida, participativa , mas não desobedecia aos pais e levou o ensino fundamental sem estudar na casa de ninguém, sem namorar, sem aprontar. Um docinho de pessoa a Cíntia, mas reprimida no último grau, a coitada.


Os pais tinham um misto de orgulho e desconfiança. Não raro a mãe dava “um perdido”, como se diz aqui, na escola, pra ver se a menina estava mesmo por lá. Sabedores da situação, professores, alunos e o staff da escola protegiam a Cíntia, avisando que a mãe estava por lá. Mas não havia o que esconder. A Cíntia era disciplinada, tranquila e não fazia nada errado. Aos olhos de uma parte do pessoal, inclusive, era insuportável por isso. Fazia tudo certo demais, não havia o que falar dela. O apelido de Boca Virgem não pegou. Não era surpreendente e a maioria admirava mais a Cíntia por suas qualidades do que percebia a eventual estranheza de seus costumes rígidos. 


Mas essa fase passou. A Cíntia do nível médio convenceu os pais de que seria bom pra seu futuro - e para o deles também - que ela estudasse numa boa escola distante de casa, num curso técnico profissionalizante. Novamente a ação dos vizinhos foi decisiva e a Cíntia fez a sua parte, sendo aprovada na seleção.

Ao contrário do que se pode imaginar, a menina não chutou o balde imediatamente, mas foi se soltando aos poucos. No final do curso, apesar da saudade de casa, da comida da mãe e até dos resmungos do pai, já era outra pessoa, sem os dogmas do passado e o conservadorismo que norteou os primeiros anos da vida. Experiências intelectuais, sociais, afetivas, sexuais até, transformaram aquela lagarta em borboleta. Difícil fugir da analogia gasta.


A Cíntia que entrou para a universidade – agora sem precisar da ajuda dos vizinhos – era outra mulher. Altiva, bem resolvida, livre, disposta, linda e senhora de si, mesmo com apenas 18 anos. 

Os anos passados longe de casa a fizeram ler de tudo, estudar com afinco e abrir o horizonte. Ela agora era quem nunca antes sonhara ser, até porque antes nem sonhava. O mundo era enorme, muito maior do que imaginava nos tempos em que sua imaginação era limitada pelas barreiras impostas  por mãe e pai.


Aos 23 se graduava feliz em engenharia. Radicalizara a escolha e era o destaque da turma. A primeira a se empregar numa construtora grande. Do alto de sua autoestima, escolheu muito, mas casou-se relativamente cedo. O Julinho foi paixão de carnaval, quando pela primeira vez se aventurou num bloco grande do centro da cidade. O calor era infernal, mas ela se encontrou ali. Pierrôs, colombinas, palhaços, vedetes, personagens de todo tipo, alguns batedores de carteira, claro, polícia, crianças, velhos, gente de todo tipo festejando como se não houvesse amanhã. Chegou ao Centro no sábado de carnaval pela manhã, conheceu o Julinho num bar na hora do almoço e só voltou pra casa na quarta feira de cinzas, depois de uma maratona de blocos e amor. Casaram-se alguns meses depois. Sem pompa e circunstância, com as famílias presentes, mas também com gente dos blocos de carnaval e do trabalho.


Queriam ter casado num samba, mas estavam atolados com seus trabalhos e não houve jeito de organizar. Foram extremamente felizes nos dez anos em que viveram juntos. Ele trabalhava na justiça e ela, sabemos, em uma construtora. O que faltava em animação no trabalho, sobrava na vida pessoal. Não eram artistas, profissionais liberais bem sucedidos ou herdeiros. Não riam muito durante o expediente, das 9 às 18h. Mas faziam do restante do tempo o melhor que podiam.

Um dia o Julinho desapareceu. Sem corpo, sem história, um inquérito infinito na polícia. Desapareceu. Só. 


A Cíntia perdeu o chão, a força, o ímpeto. Levou cinco anos pra voltar a um bloco e sempre imaginava a possibilidade de reencontrar o amor de sua vida e de seus carnavais. 

Aos poucos retomou o protagonismo no trabalho, a autoestima, a segurança que tinha. Só não quis preencher o lugar do Julinho. 


A cada carnaval, foi voltando a se entregar à alegria com todas as forças. Espera ansiosamente os blocos a partir do Natal, frequenta rodas de samba o ano inteiro. Não namora, não tem interesses além dessa alegria fluida e genuína. Tem muitos amigos e amigas, mas não precisa deles pra completar sua alegria. Antes de todo mundo, ainda em dezembro, garante todas as fantasias do ano seguinte, vai aos barracões das escolas grandes e pequenas pra escolher onde vai desfilar. 


E enche de fantasias o lugar do Julinho na cama por dois meses, enquanto se esbalda nos blocos.


Uma amiga psicóloga indicou uma outra colega e a Cíntia aceitou visitá-la. Uma psiquiatra também a atendeu. Nenhuma das duas encontrou nem leve traço de transtorno de qualquer natureza. Cíntia é feliz, sofreu um grande trauma de tristeza e vem se recuperando.

Cada vez que volta de um bloco, só lamenta mesmo o que o Julinho perdeu, coitado.

Foi sumir assim, sem avisar...


No ano que vem, numa previsão ainda incerta, ela planeja voltar a beijar na boca. Mas especialmente se não houver outra onda de calor. Segue bonita e percebe que desperta o interesse de gente no entorno.


Vai depender das cervejas que beber, do que estiver sentindo, do clima, da ambiência, da pessoa.

Enfim, ainda é engenheira e bem cartesiana. 


Só jura que aquele lado da cama vai continuar vazio! É o sagrado lugar de deixar as fantasias.

Uma coisa de cada vez!!

 

Rio de Janeiro, fevereiro de 2025.


 

Grandes sambas e grandes sambistas



Escute a Roda de Samba do Bip Bip, disco histórico, lançado pela Cedro Rosa.



Música certificada de alta qualidade. Escute grátis.

Disponivel para downloads e trilhas sonoras diversas.

Comments


+ Confira também

Destaques

Essa Semana

bottom of page