MISSÃO ESPAÇO
Já que falei em Disney na semana passada, vou estender o assunto. Hoje em dia, o nome é somente associado a um enorme império do entretenimento e a um capitalismo predatório que nivela seus clientes pelo denominador comum de sensacionalismo, fórmulas, barulho, desperdício, e opulência tecnológica. Mas Disney foi para muitos “baby boomers” como eu, o primeiro encontro consciente com a felicidade. Isso não se esquece. E naquela época toda a criação Disney era muito mais sutil, pois ao invés de visar lucro, Walt so se importava com a qualidade de seus produtos.
Quando eu tinha seis anos, meus pais estavam distantes na Europa depois de muitos meses, e morando com meus avós, fui enviada a uma escola católica super rigorosa e na qual eu era sempre a última aluna da classe. Vivia amedrontada pelas ilustrações do catecismo, pelo que nos ensinavam ser tentações diabólicas e pelas próprias freiras. A mais temida de todas me dava altas broncas em público, como se eu fosse débil mental. Isso se devia ao fato de que minha avó super econômica, hipocondríaca, furiosamente deprimida com a distancia de papai e se imaginando sempre à beira do fim, não tinha o menor saco de encontrar e comprar para mim as especificações do uniforme, ou o missal certo, ou o exato modelo de sapatos que o colégio exigia.
Ao invés disso, cismava que tal modelo barato devia servir e me fazia ir pro colégio inadequadamente vestida e levando missais errados. Sentia-me péssima desde que saíamos de casa e enquanto, dentro de alguma loja, ela cismava que tal coisa no saldo iria agradar as freiras e totalmente ignorava as minhas tímidas tentativas de oposição. Entre o rigor das freiras e a sua arbitrariedade, eu era um conflito ambulante, medroso e obsessivo. Desde então me tornei insone e adquiri o germe do TOC. A noção de pecado e penitência me assustava e o “outro mundo”, como sobremesa ou castigo após a morte, que já me aterrorizava de forma crônica por brotar da ausência de meus pais, era tortura mental e cotidiana pra mim.
Mas numa bela, poderosa tarde, fui levada ao cinema para assistir A Bela Adormecida. Até então eu só tinha visto desenho animado na TV sem cores. Mas dentro do cinema, após um momento de escuridão, me confrontar com o telão em todas as cores do arco-íris e da fantasia feérica foi uma experiencia inefável. Ao dar à fantasia a autonomia de movimento que tem a vida, Walt Disney sacralizou a própria vida independentemente da realidade. Tornando a fantasia visível e viva, ela se fez sentir mais verdadeira e imediata do que a realidade para uma criança. Na Bela Adormecida, eu vi o dragão ser vencido por um príncipe apaixonado pela princesa mais etérea que Disney criou. Vi o mal ser eliminado pela coragem na causa do amor.
Ao invés de uma recompensa no “outro mundo”, vi o final feliz como realização da vida em sua plenitude: o encontro amoroso. A fluidez com que a estória se desenvolvia através dos desenhos em movimento, a doçura destes, a união luminosa das cores com o desenvolvimento das formas e com o som era usurpadora. A aquisição da vida por ilustrações a transformava num comando em si mesma, num “direito” de ser. Do mesmo modo como sentimos, ao vermos uma acrobacia ou uma dança ser realizada com perfeição, que isso se deu naturalmente ou que sempre fora assim, a aparente espontaneidade com a qual meios de expressão diferentes se juntaram na Bela Adormecida, a integridade de sua união, se fazia sentir como se o filme havia sempre existido tal qual aparecia ao invés de ter sido feito. Essa dimensão atemporal era paradisíaca. O sentimento que transmitia de ter sido sempre dava à alegria de assistir o filme uma qualidade de redescoberta e confirmação, uma verdade maior do que a da realidade factual ou a do catecismo. O filme me salvou.
Como uma coincidência predeterminada, a combinação da fantasia feérica com a linguagem de Disney era a maravilhosa transformação daquilo que meramente “é”, no que “deve ser” e transmitia uma sensação de alívio e justiça para mim. “Finalmente” foi o que senti sem nem mesmo perceber. A figura da princesa Aurora era uma mistura da forma fabricada e exata com a de uma moça realmente viva e funcionava como a resposta adequada à realidade artificial da animação. Aquela imagem de delicadeza feminina na sua precisão de boneca se tornou para mim uma expressão gráfica do que realmente deve ser, de desígnios, como um molde de predestinação. Durante muito tempo na minha idade adulta me transmitiu transcendência e a guardei na memoria como um talismã.
A primeira vez a que fui ao Reino Magico em Disneyworld deu origem a varias outras visitas que eram para mim peregrinações. O fato de Disney eliminar a externalidade do mundo de seus personagens ao torná-lo responsivo a eles como uma extensão de sua personalidade foi o mesmo que acabar com a oposição entre a vida interna e externa de cada um. Senti nessa sincronia ou comunhão entre polaridades uma qualidade religiosa que dava fim à contingência e ao acaso. As diversões do Reino Magico, as “rides”, contam trechos de estórias de seus filmes e transformam o cliente num de seus personagens, precisando da presença e validade desse cliente ao seu “faz de conta”. Assim, ele as recria e é por elas recriado. A identificação entre criador e criatura é o cerne da adoração religiosa. As crianças, ao criarem estórias para seus brinquedos através das quais eles também se tornam personagens, realizam a comunhão de criar e ser criado sem nem mesmo se dar conta. Estão mais próximos de sua alma. Em outro departamento, essa interação do cliente com o brinquedo Disney iniciou na minha opinião o que se chama em arte contemporânea interação contemplativa, quando as grandes obras de instalação requerem a imersão do visitante para que se manifestem. Desde que tudo caminhou para a interação, acho que Walt Disney ainda teve mais influência no mundo do que lhe é atribuído.
Entretanto, ao longo dos anos, tudo foi se vulgarizando e as diversões que contavam estórias e esperavam do cliente a validez do seu faz de conta foram relegadas às criancinhas. O parque se encheu de mil personagens diferentes compulsivamente feitos para serem logo substituídos e descartados. A alma do Reino Mágico se dissipou. A opulência tecnológica e o alto volume sonoro e abrasivo das gravações nas paradas parecia feito para pessoas sem nenhuma sensibilidade. Foi difícil para mim admitir que o Reino Magico já era uma página virada. Porém, nessa mesma vez em que achei isso e quis voltar pra casa no momento seguinte, eu e minha filha nos deparamos com um brinquedo que não tinha filas, e resolvemos experimentá-lo. Chamava-se Mission: Space. Depois de ouvirmos as recomendações de um suposto astronauta num vídeo acima da entrada, tivemos acesso a uma “cápsula espacial” e nela entramos. Havia um outro vídeo á guisa de uma janela frontal dentro dela, que nos mostraria a nossa vertiginosa ascensão para além da gravidade. Nos recomendaram não desviar os olhos do vídeo por um instante sequer, para não cair no enjoo e pânico do movimento violento a que seriamos submetidos.
Quando o lance começou, senti uma violenta pressão no meu estômago que, conjugada à vista do vídeo, dava realmente a sensação de estarmos sendo lançados ao topo da torre da NASA e dali `a superação da gravidade. Era, como anunciavam, uma experiencia de glória e libertação. Em Mission: Space, o elemento visceral combinado ao visual tornava a simulação mais invasiva do que a realidade ao causar uma experiencia corporal e espiritual, desde que gloriosa e libertadora. Duas pessoas morreram dentro dessa diversão, mas não na vez em que fomos.
Descobriu-se que embora uma delas fosse criança, ambas tinham problema no coração. Verdade ou não, trata-se de uma experiencia tão maravilhosa quanto violenta. Uma união de extremos característica de Walt Disney, como a do utilitarismo da tecnologia à liberdade da fantasia, ou como a industrialização da poesia (Lo Duca) ou a do elemento físico com o abstrato, com o sentido.
Fiquei impressionada, me perguntando se a simulação não poderia ser usada na medicina para recondicionar órgãos e refazer associações antes negativas. Afinal, uma experiencia espiritual transmitida pelo próprio corpo é algo não somente misterioso quanto ilimitado. E também delicioso, desafiante e libertador!
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