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Foto do escritorLéo Viana

MORIBUNDO


Leo Viana

Não consigo me sentar! Não é pra rir não. A hora é de tristeza. Só eu posso rir! A vida foi boa. Grandes momentos. Agora eu vejo o fim próximo, a iminência do nada, ou do que houver do outro lado. Cada um acha que vai ser de um jeito, afinal. Ao longo dos anos, fui me preparando para um fim normal. Estudei um pouco de estatística, baseei minhas referências nos estudos de expectativas e probabilidades. Classe média no Brasil, hummm, uns oitenta anos, considerando aquelas tias do interior que, em condições piores, passaram dos noventa. Mas homem vive um pouco menos.


Não pensem que quero ser outro Brás Cubas! Nem pensar! No tempo do Machado se vivia menos e - vamos combinar - a gama de assuntos que o pobre defunto era capaz de discutir era bem limitada. Não! Claro que não! Ele não era pouco inteligente! Ao contrário, tanto o Machado de Assis quanto o Brás Cubas eram inteligências muito superiores ao meu pobre e obtuso raciocínio. Nem dá pra comparar, pobre de mim... Mas os coitados foram limitados por seu tempo. E aí eu nem sei se isso é vantagem ou desvantagem. O risco de deixar assuntos sem comentar é maior hoje. Ainda mais em se tratando de comentarista moribundo e intelectualmente medíocre. E vivo, ainda que na iminência de encontrar Brás e Machado pra uma conversa mais próxima. Se houver depois...


Também não quero parecer o moribundo do livro do Chico Buarque. Ele teve momentos de glória, veio de família tradicional, antepassados da nobreza, morreria com obituário grande no jornal. Eu não. Vidinha comum mesmo. Atrás do balcão, lápis atrás da orelha, forno aceso. Ia ficar na memória dos mais velhos, no máximo. Os mais jovens nem frequentam padaria mais.


Vamos em frente. Já tergiversei muito! Ia dizendo que fiz algum nível de planejamento para os momentos finais. Pois é. Pensei em como estaria, levei em consideração a inexistência de casos conhecidos de Alzheimer na família, o que me garantiria ao menos algum nível de lucidez. Tudo hipoteticamente! Ao mesmo tempo, quase concluí que estava perdendo a razão ao pensar insistentemente nisso. Passou. Não fui cuidadoso com a alimentação e nem me dediquei aos exercícios físicos com o afinco que me recomendaram. Mas a genética me foi favorável e, em que pese uma ou outra “comorbidade”, eufemismo para doenças crônicas recentemente recuperado pelos cronistas de assuntos de saúde, eu não tinha nada sério, que ameaçasse irreversivelmente meu projeto de final da história.

E vivi uma vida bem razoável. O século XX podia não ser o melhor de todos. Não foi o século das luzes, não foi o século do humanismo, nem do Renascimento. Mas nasci um pouco depois da Primeira Guerra Mundial, da Revolução Russa e da Gripe Espanhola. Tudo de uma vez só, praticamente. E nascendo no Brasil, a gente vive a história o tempo todo. O Rio tinha tido o Centro todo modificado, nos moldes de Paris, mas em escala de maquete, por um político engenheiro metido a Hausmann. Não ficou ruim, é verdade. Mas já se antevia o horror que agora tem forma definitiva, com os pobres apartados nos guetos e vielas fora das áreas nobres. Não custou muito e Getúlio assumiu. Eu era adolescente. Em princípio eu não confiava naquele baixinho. O fato de ele ser gaúcho e baixinho já me gerava uma certa desconfiança. Os gaúchos que eu conhecia eram enormes. Mas sabe que ele não me decepcionou? Tem coisa que ele fez e que tá aí até hoje. O século foi bom pro trabalho com a força dos sindicatos norte americanos, o estado de bem estar da Europa, e a CLT do Brasil, entre outros avanços. E a pressão do outro lado da Cortina de Ferro, que impedia que o ocidente destruísse completamente os direitos trabalhistas. Eu vivi pra ver o que aconteceu depois... Mas eu falava no Getúlio. O baixinho acabou subindo no salto da popularidade e virou ditador. Quinze anos no Catete. Entrou até na Segunda Guerra. Titubeou, quase entrou do lado errado, mas acabou mandando os Pracinhas pra ajudar a terminar com o Nazi-fascismo. Morreram muitos, foi triste, mas acabou rendendo uns dividendos. O Ministro da Guerra, mesmo meio descontente, foi o sucessor dele e ele mesmo voltou em seguida, quando tiveram que colocar o retrato do velho no mesmo lugar outra vez. Aí, sim, acabou mal. Podia ter saído da vida pra entrar na história sem dar um tiro no próprio peito. Deixou a CSN e mais alguns marcos da infraestrutura, que facilitaram a vida do Juscelino, que no meio daquela obsessão de fazer uma capital no cerrado, longe de tudo, teve tempo pra incentivar a indústria automobilística. Praticamente inventou o nosso engarrafamento, o mineiro. Ao menos havia a bossa nova. Eu já era adulto e pude acompanhar de mais perto essa encrenca toda. A história recente todo mundo conhece e não é privilégio meu. Do JK pra cá teve Jânio, Jango, ditadura militar, AI-5, abertura, anistia, Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e essa abjeta contemporaneidade, do golpe de 2016 pra cá. Não tenho nem paciência e nem estômago pra falar dela. O que aconteceu até aí dava a sensação boa de estar no meio da história. Esses últimos anos não. Talvez Brás Cubas gostasse mais. Eu prefiro coisas mais leves, ele era mais soturno. Engraçado, mas soturno.

E eu sigo sentindo pena do Brás. O coitado não pegou avião, não foi ver Paris de perto. Viu nem o calçadão de Copacabana, o coitado. Teve sorte de não ver as guerras, o horror da bomba atômica, os massacres da guerra civil espanhola, a divisão de irmãos na guerra da Coréia, o inominável holocausto, o mal absoluto em Ruanda, o injustificado morticínio no Vietnã. Não viu o homem na lua, não ouviu Sinatra, Piaf, Tom Jobim. Nem o disco ou o rádio. Salvou-se de muita coisa ruim também ouvido adentro, mas há quem repita que há gosto pra tudo. Ou a falta dele, digo eu.

Quando li as Memórias Póstumas, me identifiquei imediatamente. Talvez meu planejamento tenha vindo dali. Agora, com quase 100 anos, acho que fui imprudente. O Brás não teve a penicilina, esse monte de remédios, essas máquinas. UTI? No século XIX não tinha nada disso. Minha vida não foi animada, não corri praticamente riscos ao longo dessa existência longa. Herdei a casa no subúrbio e a padaria do meu pai. O velho Manoel, praticamente saído de uma piada de português, bigodão e sotaque, chegou antes das grandes levas do século XX e bem depois da multidão que acompanhou a corte. A família se espalhou pelo Brasil, ele ficou no Rio. Não viu o império, mas sofreu com os negros, mesmo tendo chegado bem depois da abolição. Percebia que a república não seria menos injusta com eles. Herdei essa percepção e acompanhei um século de injustiças. Gostei das reações nos Estados Unidos, achei pacífica demais a solução sul-africana, apesar do sucesso internacional, e espero até hoje a saída brasileira, que parece não vir. Não sei de onde saiu essa letargia.


E a tecnologia toda? O pobre do Machado escreveu tudo aquilo à mão... E o Brás, coitado, mesmo cheio de ideias, não chegaria jamais a imaginar o computador. No estado em que me encontro agora, vocês acham que eu estou escrevendo? Nada! Eu vou ditando aqui e o computador escreve. Depois eu peço pra alguém dar uma arrumada, pra ficar limpinho.

Mas agora falta pouco. Me dói tudo e não sei nem se algum órgão vital meu ainda funciona mesmo ou se é só reflexo condicionado. Quem vive muito tempo deve ter mais dificuldade ainda pra deixar a existência. Mas não dói por muito tempo. Eles me aplicam aqui umas anestesias poderosíssimas, não sei se é morfina, ou coisa assim. Só sei que basta um muxoxo meu e eles já me aplicam um troço que me faz feliz de novo. No fundo mesmo, nem dá pra ficar triste tendo visto tanta coisa.


Passei incólume (sempre quis usar essa palavra e não tinha tido oportunidade. E em quase 100 anos...) pelos piores momentos. O português da padaria não era um tipo visado. No Estado Novo eu era só o filho do português, o galeguinho. Muita piada na escola, muito futebol com os pretos das favelas, muita torcida pelo Vasco. Ah, se eu fosse bom de samba... Na ditadura militar, eu apoiava os meninos estudantes, os operários, mas não podia largar o balcão do estabelecimento. Distribuí muito pão, mas a polícia nunca bateu lá. Entreguei pão até em aparelho secreto. Depois da anistia foi muita gente lá me agradecer. Os meninos eram bons. E seguem sendo. Muitos foram contemporâneos ou professores dos meus filhos e netos nas universidades. Gente honesta, competente e bem intencionada. Quase perderam as vidas pra resolver os problemas do Brasil.


Mas meu tempo tá no fim. Eu não esperava chegar até essa pandemia. Preferia ter ficado com a lembrança da Espanhola, que nem vi. O Ebola ficou restrito. A AIDS espalhou bem, mas grande parte do mundo aprendeu como se precaver. A pesquisa não foi rápida como agora, mas foi efetiva. O troço não tem cura ainda, parece, mas já tá dando pra conviver. E isso, inclusive teve efeito contrário, porque tem um pessoal mais novo e inconsequente que perdeu o medo.


Ah, esse soro. Faz tempo que não como nada. É só pela veia. Saudades de uma feijoada, de um churrasco, de uma moqueca, um bobó... Não tive a pretensão do Brás, que querendo a glória com seu Emplastro Brás Cubas, acabou pegando uma pneumonia e virando um defunto autor. Eu ainda não sou defunto, mas parecendo estar perto o meu dia, me contento em ser um autor moribundo.


Só não me contento com o fato de, a esta altura da vida, me deparar com o pior do brasileiro, esse povo tão diferente de tudo que acompanhei ao longo do século XX.

No decorrer dessa vida longa e razoavelmente confortável - pão é coisa que todo mundo come, tem boa saída – pude ver momentos sensacionais dessa gente bronzeada. A chegada dos pracinhas na Praça Mauá foi um negócio lindo. E mais feliz, claro, que a partida deles. Os cortejos fúnebres do Francisco Alves, do Getúlio Vargas e da Carmen Miranda, nos anos 50, foram emocionantes demais. A passeata dos 100 mil, que maravilha.


A unanimidade em torno do Chico Buarque e do Geraldo Vandré nos festivais dos anos 60. Coisa linda aquilo tudo. A delícia que era ouvir rádio durante muito tempo no Brasil. Música de altíssima qualidade, que o mundo todo queria ouvir e aqui brotava feito maria-sem-vergonha na beira da estrada... Nem dava pra desconfiar que o ovo da serpente estava sendo chocado. Já velho, acompanhei os governos desses meninos da esquerda. Lula e Dilma, que maravilha foram. Talvez não tivessem muito apego pelo poder, o que pode ter aberto as portas para os mal intencionados que andaram em volta deles. O tal de Centrão cola em qualquer superfície, por mais antiaderente que seja...


Agora estou aqui, a um clic de deixar esse mundo besta, resistindo, sou teimoso, mas não queria mesmo ir num momento tão ruim, mesmo que pareça inevitável.

Gosto de lembrar das vezes em que fui à Europa, sempre rapidinho, pra voltar à padaria, e da receptividade e da alegria de todos quando eu me dizia brasileiro. Éramos o último paraíso na Terra, o lugar onde todos queriam viver. Mais barato, mais festivo e com sol o ano todo. Um ou outro reclamava da violência. Eu não podia negar, mas não era algo que impedisse a vida. A alegria de viver compensava qualquer dificuldade. Um povo que faz os carnavais do Rio, Recife e Salvador, faz qualquer coisa, resolve qualquer problema, por pior que ele seja.


Mas aí, justo os maus, os odientos, os contrários à festa, os que não gostam de sol, os que preferem a escuridão, chegam ao poder e ainda ganham, de lambuja, uma providencial pandemia, pra facilitar seu intento de maltratar a vida.

Não estou morrendo de Covid-19, sou velho demais e até me vacinei, muito depois do que deveria, se a bicheira que nos governa não tivesse deixado de comprar vacinas quando deveria ter feito. Tô morrendo de velhice. Lúcido, mas de velhice, as coisas não funcionam mais como deveriam.


Quero mesmo é que tudo se ajeite aqui e que, do outro lado, haja o que houver, não sejam muitos os que pensam como essa gente. Mas se facilitar pra quem fica, uma vez morto, eu vou ver se lá eles tomam alguma providência pra agilizar a ida dessa gente ruim pro lado de lá. Quem fica aqui e ama a vida, a liberdade e a alegria não merece conviver com essa raça!

Obrigado a Machado de Assis e Brás Cubas. Estou chegando. Quero encontrá-los em breve pra um café ao menos.

Fui.

Clic.


Rio de Janeiro, maio de 2021



 

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