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Foto do escritorLéo Viana

MÚSICA ALTA



O equipamento de som fazia o Zé Kéti cantar alto como nunca antes. Nem nos tempos do Teatro Opinião. No apartamento com poucos móveis e uma impressionante quantidade de livros empilhados (o projeto da estante sofria há tempos com a procrastinação), a playlist - que começava com “A Voz do Morro” e terminava com “Mascarada” - passava a limpo a carreira do sambista e se repetia sempre na potência máxima do som caseiro turbinado com uma dessas caixas bluetooth que transformam qualquer celular em Furacão 2000. Sempre com aquela terrível e inevitável distorção, resultado do excesso de volume. O vizinho do 402, incomodado e meio preocupado, ensaiou dar um toque, mas conseguiu ver a silhueta do Marquinhos na janela e concluiu que ao menos vivo e sóbrio ele devia estar. A barulheira era intencional. Melhor não comprar a briga. Nem fazia tanto calor assim e seria menos traumático fechar os vidros, que eram à prova de ruído em todo o prédio, graças à proximidade de uma grande avenida e de um centro de distribuição de cargas, o que implicava uma constante movimentação de caminhões, especialmente nos piores horários, durante a madrugada. A inacabada tentativa de reabilitação de uma área fabril da cidade fez surgir fenômenos como esse. A maior parte da área já tinha se tornado residencial, mas restavam alguns estabelecimentos incompatíveis com o sossego. E eles não pareciam dispostos a abandonar a região.


As muitas constatações e eventos periféricos não tiravam o foco do principal: desilusão. De novo. E sempre. Com sofrimento, drama, dor. Agora o Zé Kéti era a trilha sonora. Mas já houvera rompimentos banhados a Chico Buarque, Caetano, Milton, Gil, Tom Jobim, Dorival, choro, jazz, música erudita…


A constatação do vizinho do 402, verdadeira prova de vida, como aquelas dos institutos de previdência, tinha base empírica. Vivia no mesmo prédio que o Marquinhos desde a construção, em meados dos anos oitenta. Acompanhara, da janela, o drama ocorrido das outras vezes. Sabia que o vizinho não era dado a tentar afogar o fim dos relacionamentos em álcool ou tentando a autodestruição. No máximo atentava contra os próprios ouvidos. Em geral até com bom gosto musical, apesar do excesso de veemência. Nas vezes anteriores, quando esses pequenos trios elétricos portáteis ainda não existiam, usava caixas de som amplificadas, dispostas estrategicamente nas janelas, para que todos ouvissem sua dor. Um ou outro reclamava da altura, mas não se podia dizer nada da qualidade da música. Ninguém jamais ouvira Pixinguinha ou Jacob do Bandolim com aquela tonelagem de show de heavy metal.


O rompimento, dessa vez, foi com a Lalá. Layla, médica séria e competente, um tanto romântica, mas muito pé no chão. O Marquinhos conheceu-a num seminário sobre a indústria farmacêutica, ele advogado de uma associação de doentes crônicos, ela representante do sindicato dos médicos, ambos combatentes ferrenhos dos impérios farmacêuticos e de seus lucros astronômicos.


Viveram alguns anos juntos, aguentando-se reciprocamente. Marquinhos tinha seus maiores defeitos associados à expansividade e à tagarelice. Continuava falando mesmo quando as evidências deixavam óbvio que devia calar, na leitura sempre crítica, mas afetuosa, da Lalá. Perguntava mais do que devia, interessava-se pelo que aparentemente não devia ser de seu interesse, por aquilo que tinha relação com o foro íntimo dos outros. Era sincero em sua curiosidade, imaginava a possibilidade de ser útil aos outros a partir de algum conhecimento maior que tivesse das pessoas e de suas alegrias e dramas pessoais, daquilo que verdadeiramente as formava como gente a partir de uma perspectiva humanista, mas humanismo quase de almanaque. Era racional, mas parecia afetivo demais. E aquilo incomodava. Era perguntador, simpático no extremo, meio invasivo, mas as pessoas iam na conversa.


A Lalá se contorcia em cólicas de mau estar quando ele começava um diálogo com uma pessoa recém-conhecida. Era quase o fim da festa pra ela. Mas em geral o fim era tudo o que aquilo não era. Além das entrevistas intermináveis, era também o inimigo número um do final das festas. Não era um beberrão compulsivo, nem mulherengo ao extremo. Lalá desconfiava que até o charme que Marquinhos eventualmente jogava nas mulheres era com vistas a uma entrevista futura, não tinha nada de romantismo ou galanteio. E levava isso às últimas consequências. Era um conversador compulsivo. Talk-a-holic, como Lalá o chamava, por vezes.


As reclamações dele sobre o comportamento dela tinham outra natureza. Lalá era desinteressada de quase tudo. Aplicada no trabalho, mas sem o entusiasmo juvenil que tivera no início da carreira. Não raro passava da hora, era obrigada a dobrar plantões, mas nunca sem reclamar muito. Era uma sindicalista aguerrida, mas desiludida com o futuro da profissão e da sociedade. Se mantinha na esquerda, reivindicando, mas mais por inércia que por esperança legítima. Também se agoniava em festas, ora com a conversação do Marquinhos, ora com a desinibição dos outros, movida a álcool ou outros agentes químicos estimulantes. Mas também a desanimavam a música alta, as comidas, as bebidas, a vaidade das pessoas e suas reclamações constantes de solidão e depressões, normalmente os assuntos mais integradores. Também não era de ficar ao celular, o que tornava tudo ainda pior. Mas seguia indo às festas. Talvez nutrisse uma esperança paradoxal de que viria a gostar daquilo pelo hábito.


Eram muito diferentes, enfim. Estranhamente, funcionavam bem no ambiente doméstico. Não tinham do que reclamar um do outro entre quatro paredes, mas era cada vez mais raro. A tagarelice do Marquinhos quase acabou com o relacionamento ainda no início, apesar das qualidades. Bom marido. Cama, mesa, banho, forno e fogão e até na pia de louças. Gostava de bons vinhos, tinha um belo portfólio de viagens, mas falava demais. E falava das ex, dos amigos, de alegrias e sofrimentos anteriores, sempre com um autocentrismo levemente exagerado. Mas a Lalá não viu problema naquilo. Achou que ele supriria a timidez verbal dela, que parecia ter gasto todo o seu potencial verbal nas defesas do mestrado e do doutorado. Tendia agora ao silêncio conventual. Só falava quando muito necessário, com a legítima e necessária exceção das reuniões no sindicato ou quando representava a categoria, como no seminário em que conheceu o Marquinhos.


Com o tempo, até se habituou a conversar com ele, que por sua vez aprendeu a dar espaço para que ela se manifestasse. Viviam bem assim.


Mas a língua solta do Marquinhos, no capítulo das desilusões, falou da Lily. E a Lalá sentiu certo desconforto. Não que a Lily fosse uma ameaça, mesmo tendo sido a maior paixão da vida dele, segundo o relato. Ela agora vivia na Itália com um correspondente estadunidense da CNN. A Lily, nas palavras do ex, não tinha defeitos. Era pra tudo. Era animada, falante, bonita, entusiasmada com a vida, aventureira. E foi o fim desse romance de sonho que fez o coitado colocar o “Grande Circo Místico” pra tocar a todo volume. Nunca antes “A História de Lily Braun” foi tão ouvida e tão alto. Ficou imaginando, a Lalá, que compositores, que canções embalariam uma eventual separação deles. Não tinha a intenção, mas a existência da Lily tocou em sua sensibilidade.


E a sensibilidade a fez sair de casa na terceira vez que, ato falho, Marquinhos a chamou de Lily. Custara a descobrir, da pior forma, que ele não superara o romance anterior. Já tinha dado mostras disso. Ela não falava muito, mas tinha orgulho de ser Lalá!


A inveja que tinha era de não conhecer uma música que homenageasse uma Lalá. Sabia que ele sofreria igual e haveria música alta.


Ela não passou para ouvir. Afinal, nem desconfiava que ele sabia que ela adorava o Zé Kéti. Foram dois dias de samba nas alturas. E ele chorava mais quando lembrava, entre soluços, que ela adoraria o repertório.


Era um humanista.


Rio de Janeiro, setembro de 2023.


 

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