NOTÍCIAS
- Leo Viana
- há 8 minutos
- 4 min de leitura

Na sexta, depois do feriadão, a Deisinha precisava relaxar. Tinha trabalhado sem pararenquanto todos se divertiam e nem pôde lamentar e refletir sobre os acontecimentos recentes, que envolveram o falecimento de personagens que ela admirava, fatos históricos relevantes pra contemporaneidade brasileira e outras coisinhas. Desde o tempo do jornal impresso ela gostava de passar os fatos em revista ao final de cada dia. Mas junto com a internet e o derrame diário de informação em tempo real, veio também o ofício novo, de guia turística. Ela sempre adorou o Rio e não trocaria por nada esse trabalho, mas ela não era mais a jovem nadadora e triatleta do passado. Hoje, precisa fazer muito mais esforço pra levar hordas de turistas aos pontos de interesse nessa cidade desigual, meio cruel, suja e bagunçada, mas ainda capaz de encantar quem vem e até quem sente a dor e a delícia de viver aqui.
Por isso o feriado foi hard. Muita gente querendo ver o Cristo, o Pão de Açúcar, o Maracanã, escolas de samba, praias, a escadaria do Selarón e outros pontos. E ela se desdobrando pra manter o pique. Os dias terminavam geralmente em esgotamento físico e mental, sem qualquer possibilidade de reflexão.
Na sexta, forçou uma pausa. Havia um grupo de dinamarqueses agendado e uma comitiva de mulheres quenianas que ela deveria orientar, mas declinou de ambos os compromissos em nome de sua própria saúde. Vinha trabalhando ininterruptamente desde o verão, encarou aquelas temperaturas típicas do Vale da Morte que marcaram o início do ano no Rio de Janeiro, repetiu descrições urbanas e relatos históricos incontáveis vezes nos idiomas que domina, defendeu até uma boa graninha com o ímpeto de quem, no passado, já trabalhou apenas quatro meses pra garantir o ano todo. Mas essa situação mudou. A temporada dura os 12 meses e nem era necessária aquela afobação toda. Custou a se dar conta disso, mas quando percebeu o erro, sentou e foi, finalmente, refletir sobre a vida e os acontecimentos.
Ainda trabalhava quando soube da morte da Cristina Buarque. Sofreu calada. Lembra de ficar em pé, em Copacabana, na calçada de um botequim minúsculo, comandado por um baixinho tão querido quanto rabugento e ver passar por ali sambistas do mais alto nível, a começar pela Cristina. Viu o desfile de grandes nomes naquele espaçozinho acanhado, mas gigante. Anônima ali, ouviu Cristina cantar e contar histórias sensacionais da Velha Guarda da Portela, lembrar sambas que ela mesma, Deisinha, só tinha ouvido na voz de sua avó, trocentos anos atrás.
Cristina era a guardiã de uma memória coletiva e histórica que depois foi em grande parte incorporada por uma juventude interessada, mas pela qual é preciso zelar sempre, porque provavelmente não haverá mais Cristinas. Agora ouve os discos que ela deixou, mas mesmo afastada do botequim e sem ter notícias de Cristina há muito, sofre profundamente a perda da cantora que dividia seu conhecimento com todo mundo, naquele botequim pequeno, parecendo não se importar com fama e glamour, elementos geralmente associados aos artistas da música. Lágrimas rolaram sem controle. Quantas. Essa talvez seja avantagem intraduzível de viver sozinha.
As olheiras do choro por Cristina ainda eram visíveis quando chegou a notícia da morte de Francisco. Como assim?? Que porrada! Lembrava que esse era o quinto papa desde que prestava alguma atenção às coisas, às notícias. E pela primeira vez tinha verdadeiramente nutrido um afeto diferente por um pontífice. Desde criança achava estranhos aqueles caras falando ao mundo a partir de Roma, cheios de regras e rituais, mas distantes, daquele balcãozinho do Vaticano. Era tudo muito luxuoso, ostentatório. Gostava dos bispos brasileiros Dom Helder, Dom Paulo, Dom Tomás, Dom Pedro Casaldaliga. Nenhum deles virou Papa. Só há pouco, com a ascensão do argentino Jorge Bergoglio, sentiu que a grande e milenar máquina da igreja parecia se aproximar, mesmo com toda a ritualística romana, daquilo que, acreditava Deisinha, seriam os ensinamentos de Jesus.
Bergoglio era jesuíta, ordem historicamente identificada com a expansão da igreja, mas adotou o nome Francisco, o santo da natureza, dos animais. Nada mais razoável, num mundo de mudanças climáticas provocadas pelo modo como a humanidade se relaciona com o meio em que vive, de guerras absurdas e acumulação de riquezas imensuráveis ao mesmo tempo em que fome e pobreza ainda grassam em grande parte dos países.
Apaixonada perdidamente por Francisco, tinha voltado até a dar as caras na missa, um dia ou outro. Volta e meia se arrependia de ir, ao ouvir baboseiras indefensáveis como a defesa do ex-presidente (aquele mesmo...) e de seu projeto de teocracia-miliciana.
Agora, enquanto chorava a morte do melhor Papa desde a fundação da igreja, sentia o coração se crispar de ódio daqueles que o maldizem por ser progressista. Deseja o pior pra eles e se penitencia por isso, porque sabe que Francisco não pensaria assim, tendo aquele coração misericordioso.
Só foi capaz de abrir um sorriso ao saber que o cancro nacional, a pústula purulenta e mal cheirosa que nos assombra, recebeu uma intimação dentro daquela UTI que não parece uma e que a outra ferida aberta que já nos incomodou tanto, aquela de Alagoas, foi conduzida pra uma cela.
Deisinha sempre gostou de “sentir” as notícias, mas não tinha tido tempo pra fazer isso nos últimos dias.
Lavou a alma agora, na sexta. Quando tirou o crachá e o chapeuzinho de guia e sentou na varanda com uma cerveja e o computador, pra ler em letras maiores as notícias acumuladas.
O mundo está mais triste sem Cristina e Francisco, mas ao menos o Brasil está mais feliz, justo e bem resolvido com Bolsonaro mais uma vez intimado e Collor preso.
Deisinha acha que quatro notícias fortes são suficientes pra uma manhã.
Melhor ir fazer o almoço, ela pensa.
Tem namorado novo e o coração testado e aprovado por tanta emoção de uma vez só.
Deisinha agradece pela vida de Francisco e Cristina. E deseja que se faça justiça até o fim para os outros dois.
Vai convidar o namorado pra uma roda de samba na noite de sexta.
Sempre há o que comemorar!!!
Rio de Janeiro, abril de 2025.
Escute. o histórico CD em homenagem ao Bip Bip, com grandes sambistas brasileiros.
Thiago Kobe, um grande nome da música brasileira, na Cedro Rosa. Disponivel para downloads e trilhas sonoras.
A Cedro Rosa Digital é mais do que uma plataforma. É uma comunidade musical que valoriza a diversidade, a qualidade e a originalidade dos artistas brasileiros e do mundo. Se você é um profissional da música ou um amante da arte sonora, faça parte da Cedro Rosa Digital e descubra um universo de possibilidades.
Comments