O Eu Hiperbólico
Aercio Barbosa de Oliveira[1]
Pronome pessoal, designação para identidade de uma pessoa, individualidade, expressividade do ser cognoscente, da estrutura psicológica, fundamento do ser etc. Esses são alguns dos diferentes significados da palavra eu para as diferentes áreas do conhecimento. Na língua inglesa, no sentido de um ser autorreflexivo, agente, que se constitui nas interações sociais, designa-se self. O propósito aqui é modesto. Sem recorrer a um estudo ou indicações das fontes do eu ou do self, é problematizar de maneira breve uma forte marca do nosso tempo.
O eu contemporâneo resulta de uma construção histórica. Um dos marcos dessa construção, encontramos no século XVI, quando Martinho Lutero escreveu e publicizou as suas 95 teses. Essas criticavam a forma da igreja católica conceder indulgências aos seus fiéis. Com esse ato, M. Lutero abriu o caminho para uma relação direta das criaturas pensantes, com o Criador, sem mediador, sem pagamento de pedágio. Uma prática, que indiscutivelmente subsidiou a formação do eu moderno, a partir de uma atitude autônoma para expressar uma crença religiosa. Depois disso, tivemos entre tantos fatos e teorias, René Descartes, com o seu tão popular “cogito, ergo sum” – penso, logo existo; Sigmund Freud, inventor da psicanálise, quem perscrutou a mente até chegar num Ego, “espremido” entre o Id e o Superego, que não mandava mais em sua própria casa (Razão); George Hebert Mead e o seu interacionismo simbólico, teoria sociológica, que trata da constituição do nosso self. E assim foi ganhando cores, vida, sentido, complexidade, o que hoje conhecemos e designamos como eu. É bom lembrarmos que autonomia, individualidade, livre arbítrio, liberdade, a construção de uma autoimagem etc., são conceitos e atitudes, intrinsecamente ligadas a esse eu.
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Ao longo da história contemporânea, no entanto, principalmente a partir do final do século XIX, estruturamos nossa personalidade, nossos hábitos mentais, sobre a sempre tensa relação entre o eu e o nós – nunca estivemos sós, nem mesmo em nossa vida uterina. Assim, muitos ideólogos no século XIX, ao ver o crescimento da desigualdade socioeconômica, o flagelo provocado pela escravização, e tantas outras formas de subjugação e produção de miséria, buscaram justificativas para debelar ou reduzir o sofrimento humano da maioria da população. As motivações para tal ensejo eram variadas. Religiosas, ao se ancorar na compaixão cristã; filosóficas, ao se inspirar em Jean Jacques Rousseau, por exemplo; pragmáticas, ao prever a intensificação dos conflitos sociais se não colocasse peias na miséria. Pouco importam as fontes que nutriram essas ideias, o fato é que entramos no século XX, principalmente após a Primeira Grande Guerra, com a transmutação de ideias em instituições, em sistemas societários, para extirpar ou reduzir os males sociais na terra. New Deal, nos EUA, socialismo em países do Leste Europeu e da Ásia, Estado de Bem-Estar em países do Norte da Europa, após a 2ª Guerra Mundial, foram, ao fim e ao cabo, um grande teste para o eu na sua relação com o nós. Preocupar-se com a condição de existência do próximo, confiar no Estado-Providência para garantir recursos por meio de políticas para o nós (sociedade), passou a ser considerado como algo relevante.
Mas tais ideias e práticas se dissiparam feito fumaça. Foram progressivamente perdendo sentido e praticidade a partir do final da década de 1960. Há consenso que um marcador importante desse dissipar foi a eleição de Margareth Teacher, em 1979. Já fiz essa indicação histórica em recente artigo que escrevi nesta página. A “dama de ferro”, foi uma referência simbólica global que abriu a caixa de pandora, quem, ao meu juízo, ajudou a disseminar o vírus desse eu hiperbólico. Teacher, em entrevista, no final da década de 1980, para que aliados e antagonistas ouvissem, afirmou: “A sociedade não existe. Existem homens, existem mulheres e existem famílias”. Para complementar a derrocada do nós, ao menos em tese, tivemos a queda do Muro de Berlin, em 1989. O começo do fim do socialismo real. Esses foram alguns dos ingredientes que temperaram essa verdadeira doença de um eu fora de medida.
Vivemos um tempo em que se acredita que os problemas estruturais, aqueles inúmeros problemas sociais, podem ser resolvidos apenas com o empenho individual. Evitaremos o colapso climático se fizermos nossa parte – consumir menos carne, evitar usar canudo de plástico, ficar menos tempo no banho e por aí vai. Na questão econômica, cada um virou empreendedor de si. Se você não está bem empregado, com um salário razoável, a culpa é sua ao não se empenhar o suficiente. O Estado, o ente que representaria, ao menos em tese, os interesses coletivos, o cuidado com o nós, passou a ser demonizado. Tornou-se o covil dos corruptos. No Brasil, nos últimos anos, sobretudo com a pandemia, temos visto a acelerada destruição do Estado, a regulação de normas que violam a dignidade humana e o ambiente (lembrem do “vamos passar com a boiada!”). Ao mesmo tempo, seguindo a cultura do eu hiperbólico, entes econômicos privados, como as corporações com suas fundações para ações sociais, assumem de maneira enviesada aquilo que deveria ser responsabilidade do Estado – distribuem alimentos aos famélicos, realizam doações de bens, se dispõem a realizar atividades educacionais etc. Aproveitam muito bem da desigualdade para fortalecerem suas marcas.
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Nada disso é capaz, ao menos até agora a história tem demonstrado, em resolver os dilemas de uma sociedade complexa, com milhões de pessoas, em que as crianças e os idosos, não podem ser cuidados apenas pela família ou depender da generosidade mercantil das corporações. Evidente que, diante do desespero, da calamidade, não é fácil desprezar ajuda, seja lá qual a sua origem. Mas não podemos seguir em paz, numa sociedade mais e mais egótica, que cultua corporações, supostos “inovadores” e “influenciadores”, avaliando que poderemos prescindir de instituições estatais para distribuir a riqueza socialmente produzida em um país, sobretudo em um tão desigual como o nosso.
Em resumo: o ser humano, por mais que valorize a si próprio, e isso é saudável, é um ser social, dependente do nós (sociedade e suas instituições públicas, estatais p. ex.). O eu hiperbólico, desmedido, é a derrota social de qualquer país ou coletividade. O eu só se configura como tal, em relação!
Aercio Barbosa de Oliveira Educador popular da ONG FASE e bacharel e mestre em filosofia pela UERJ.
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