O quarto ao Lado (The Room Next Door)
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Mais uma vez, Pedro Almodóvar abençoa a realidade com seu poder de reconciliação de extremos opostos, o que lhe permite dar finais felizes, por assim dizer, `as tragedias mais pungentes.
“The Room next Door” vai muito além do que concerne a eutanásia ou o direito que deveríamos ter de morrer com dignidade.
Para começar, é super significativo que Ingrid, a escritora que vai acompanhar sua amiga Martha em seus derradeiros dias, tenha horror à morte e comece o filme autografando o livro em que fala sobre o tema. Ela tinha morado na Europa e não via Martha havia anos, mas, nessa ocasião, é informada sobre a situação da amiga, que se encontrava num hospital, ainda sendo tratada do câncer que contraíra. Decide visitá-la e as duas botam em dia sua amizade. Mais tarde, ao saber que já não tinha mais cura, Martha resolve dar fim a si mesma, antes que o câncer de que sofria o fizesse. Como não tinha família a não ser Michelle, uma filha que a estranha- ressentida com o fato de que Martha fora uma mãe distante e de nunca ter conhecido o pai- Martha conta à Ingrid seu plano “suicida” e pede que esta venha passar consigo os seus últimos dias, fora da cidade e dos ambientes que tinham sido parte de sua vida.
Ao entrar no quarto que escolhe no apartamento que alugou, ela informa Ingrid que o dia em que sua porta estiver fechada pela manhã, ela já terá tomado a pílula fatal que havia conseguido ilegalmente. Na manhã em que Ingrid primeiramente encontra a porta de Martha fechada, tem a reação que o espectador talvez tivesse, ou ao menos espera que ela tenha. Sem ousar abrir aquela porta, Ingrid vomita e vai chorar sobre uma cadeira do lado de fora. Enquanto faz a sua catarse, Martha lhe aparece ainda viva, e explica que devia ter sido o vento que havia fechado sua porta. Diz `a Ingrid que aquilo servira como teste para prepará-la. Acho importante notar que logo que a vemos, ela nos deixa em dúvida se é uma aparição fantasma ou se está ainda viva, pois nisso já há uma identificação intensa entre a vida e a morte, como uma dica de que Martha continuará “viva”.
Num daqueles dias daquela terrível contagem regressiva, o qual Ingrid ainda não sabia ser o definitivo, ela almoça com Damian, um escritor que havia sido amante de ambas as amigas, em épocas diferentes. É então que, em minha opinião, acontece o momento redentor. Damian, que geralmente dava palestras ecológicas e apocalípticas, tendo certeza de que o mundo sob o poder da extrema direita esta com os dias contados, confessa para Ingrid que havia se desentendido com seu filho por ter este lhe contado que seria pai pela terceira vez. A insensatez na visão de Damian que seu filho comete trazendo mais uma criança para um mundo que vive seus últimos dias, faz com que se afastem um do outro. Michelle repreende Damian, dizendo que ele não tinha nenhum direito de brigar com seu filho, pois ela mesma estava aprendendo com Martha, cujos dias contados não lhe impedia viver o que ainda era capaz de viver.
Regressando ao apartamento, Ingrid vê a porta do quarto de Martha fechada, mas dessa vez teve coragem de abri-la. Enquanto seu olhar percorre o quarto, o espectador espera que veja Martha desfigurada em cima de sua cama ou no chão. Mas Ingrid só a encontra sobre uma das espreguiçadeiras do lado de fora.
É então que Almodóvar novamente irmana o mistério ao sublime. Assim como expressou o enigma do estado comatoso (“Hable com ella”) na personagem de Alicia Roncero, ao lhe dar uma beleza transcendente em sua total inconsciência, o cineasta mostra na figura de Martha o mistério de seu corpo sem vida como uma fonte de luz. As cores e a luminosidade da imagem daquele corpo transmitem não somente beleza como uma espiritualidade inefável. O mistério não é só retratado como sublime, mas como fonte de luz. Continua intocável como o noumenon de Kant, e como este, uma eterna inspiração.
Enquanto a maioria das pessoas se sente ameaçada pelo inexplicável, ou o considera como algo obscuro a ser decifrado, Almodóvar respeita o mistério com a humildade infantil do maravilhamento; com o que é, na verdade, a única resposta para o que nos ultrapassa.
Ingrid contacta Michelle, e quando ela chega, obviamente representada pela atriz que atuou como sua mãe, percebemos, pelo que se segue, que essa repetição da mesma atriz é proposital; que Michelle significa então a própria reconciliação com sua mãe: a volta de Martha.
Com efeito, Ingrid conta à Michelle toda a estória dos conflitos da amiga- que se tornara mãe acidentalmente na adolescência- de sua impossibilidade de encontrar o pai de Michelle, e das condições de como ele havia regressado da guerra do Vietnam, o que o levara a uma fatal alucinação. Michelle obviamente entende que devido a tantas dificuldades, sua mãe não fora tão negligente como ela havia pensado.
No final do filme, Ingrid escreve `a Martha para lhe dizer que a sua presença enchia o lugar em que ela havia morrido e onde ela mesma e Michelle agora se encontravam.
Em outras palavras, para dizer à amiga, que através de sua morte, ela voltava mais viva do que nunca!”
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Entendendo a Cedro Rosa e o direito autoral
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