O Sagrado Coração de Jesus
Quando papai e mamãe foram pra Europa com bolsa de estudos, deixaram eu e meus irmãos com nossos avós paternos. Tendo completado seis anos de idade, comecei a frequentar o colégio Le Sacré Coeur de Jesus (O Sagrado Coração de Jesus). Só então vim a conhecer o lado escuro de vovó. Sentindo-se abandonada e traída por papai, que deu o fora com mamãe por dois anos (era o período que a bolsa cobriria) e sem levar em conta o quanto a sua própria mãe vivia cansada e, na cabeça dela, doente. Cismava ter uma fatal condição cardíaca, e na revolta que ficou, tornou-se incapaz de se esquecer um pouco e ver que se meus pais nos tivessem levado consigo, ela e vovô se sentiriam muito sós. Tudo que ela tinha que fazer por nos e que não podia delegar para suas empregadas, lhe parecia uma sentença de morte. O simples fato de ir com seu motorista me comprar os uniformes exigidos pelo colégio era uma Via Crucis para ela. Descia as escadas do jardim bufando atrás de mim, e ao entramos no carro, ela sempre decidia ir comprar o que devia no Catete, porque era mais barato. Eu imaginava que como todas as meninas do Sagrado Coração, eu merecia ter o que essa escola exigia e me orgulhava disso, mas o fato de depender dos esforços de vovó só me dava direito a me sentir culpada. Desta feita, eu não ousava reclamar quando ela cismava em comprar coisas totalmente erradas em relação ao que o colégio requeria, ou porque essas coisas eram mais baratas ou porque já estava de saco cheio de procurar o certo.
O uniforme quotidiano constava de uma saia pregueada azul marinho, uma blusa branca bufante, meias brancas e sapatos pretos de um determinado modelo comum em comum com as freiras e estudantes. Tinha também uma gravatinha azul marinho que parecia oficializar a conquistada maturidade de me tornar uma estudante, e me enchia de orgulho. Tal uniforme, com exceção dos sapatos, era pra ser comprado no próprio colégio, e nisso vovó não teve chance de errar. Porém, escolheu tudo dois tamanhos acima do meu, para que durasse uns três anos e lhe desse a chance de economizar o dinheiro de ter que comprar as mesmas peças de novo.
Imaginou-se muito esperta ao planejar com a pobre mulher que designou ser a costureira doméstica, uma camiseta que seria costurada `a cintura da saia, para que quando engolida por esta saia, ela não me caísse pelas pernas. A camiseta ficaria sob a blusa branca-que era também dois tamanhos acima do meu- de modo que ninguém poderia vê-la. “Ninguém vai poder ver a camiseta e a saia vai então durar muito mais!” vovó repetia pra costureira, cheia de orgulho. Eu então quase desaparecia dentro de uma saia que não só era larga, mas me batia bem abaixo dos joelhos, fazendo de mim o que na época era chamado de “Maria Mijona”.
Mas mesmo que eu me sentisse encalorada e absurda dentro daquela roupa, as freiras não podiam reclamar que eu estava usando o modelo errado. Os sapatos, entretanto, foram um problema. Todas as vezes em que vovó saia comigo para comprá-los naquela mesma área restrita da cidade, arranjava mil oportunidades para errar, fosse por encontrar algum par que nada tinha a ver mas estava no saldo, fosse por já estar muito cansada pra continuar a procurar, ou por sua teimosia em ignorar as restrições que eu, intimidada e culpada, só conseguia balbuciar. Ela declarava com a maior autoridade que “aquele “par que vira na vitrine, que parecia tão forte e duradouro e que ainda por cima estava no saldo, iria agradar `as freiras.
Amedrontada por sua aflição, eu, contra a minha própria consciência de que ela estava errada, me forçava a acreditar no que dizia. Acabei indo pro colégio três dias seguidos com pares de sapatos novos e igualmente errados, levando a mais temida freira a me esculachar diante da classe inteira, como seu fosse débil mental: “Como que você não percebe qual o modelo certo? Vem ao colégio todo dia e vê como ele é no pé de todas as meninas!!!” gritou, enquanto todas elas olhavam pra mim.
O segundo uniforme era orgulhosamente chamado de “uniforme branco”, pra ser usado `as sextas-feiras, devido `a cerimonia que nesse dia da semana acontecia na sala maior do colégio. Era o único dia em que a Reverenda Madre aparecia diante de todas nós. Esse uniforme se compunha de um vestido rodado de fustão, tendo a parte de cima bordada em casa de abelhas. Devia ser complementado por sapatos brancos de modelo tradicional pra meninas, e luvas brancas. Pra mim, era o mais lindo traje de meninas que eu já tinha visto na minha vida, mas só podia ser encontrado na Bonita, uma loja que vovó achava cara demais. Ela então comprou o fustão branco no Catete, e disse `a costureira doméstica que fizesse alguma coisa com aquilo. A habilidade da mulher não era mais que básica, e ela se saiu com um conjunto de saia e blusa que nada tinha a ver com o tal uniforme que eu tanto desejei.
E o missal? O “certo”, quero dizer?
Antes de finalmente ganha-lo, tive que deixar vovó comprar dois que não eram ele, quando dentro das lojas, a sua indignada aflição me fez novamente “acreditar” no que sabia não ser verdade para nos livrar daquele sofrimento. Por causa disso, fui novamente insultada pela freira na frente de toda a minha classe. O missal certo tinha capa de couro, páginas de seda, era escrito em Latim, e eu o via todo dia na posse das meninas na igreja. O odor morno daquelas páginas e a ideia de sua santidade o tornava extremo para mim, enquanto os santinhos que eu via inseridos dentro deles, tendo sido colecionados e trocados entre as meninas, davam um toque lúdico `a seriedade do missal.
Eu não entendia as palavras em Latim, mas ainda assim adorava o seu som e sentia orgulho das únicas que aprendi a responder, depois que o padre dizia “Dominus Vobiscum” (O Senhor esteja convosco). A frase “Et con spirituo tuo” ( e contigo também) pulava de minha boca com uma extra dose de convicção que me fazia sentir que participava de verdade da cerimonia. Também adorava admitir culpa no ritual cristão, porque podia assim bater no peito com mais força do que necessário nos “mea culpa”, como que compensando por tudo de que estava aquém naquele colégio.
Dentro da capela, a imagem do Cristo ressuscitado em tamanho natural, acima do crucifixo sobre o altar, a música cantada pelo coro, o som de suas palavras, o movimento de fazer o sinal da cruz, de se ajoelhar e levantar de acordo com o que dizia o padre, eram parte da mesma importância, da mesma obediência a uma grandeza que não mudava nada visível ou de imediato, mas que mesmo assim continuava a imperar acima de tudo numa espécie de segurança dentro do útero, que mantinha distante o mundo externo. Palavras e gestos eram sempre os mesmos, mas a velhice da repetição dava lugar `a força do rito e fazia o tempo parar.
Tudo que eu copiava das meninas na igreja apontava para um além fugidio, grandioso e frequentemente ameaçador, mas que era final independentemente do que fazia ou deixava de fazer para melhorar as coisas aquém. Através da missa Católica, eu me anulava na anonimidade do respeito coletivo ao invisível e me libertava de mim mesma. Na igreja, eu não era notada por causa do modelo errado dos sapatos que usava, por causa das minhas notas baixas, da minha desorientação crônica no mundo lá fora, ou de tudo que levava as freiras a me desprezarem e as meninas a me esnobarem. A casa de Deus era um lugar fora do mundo, e nela eu podia me esquecer. As meninas maiores não podiam me assustar como gostavam, e as freiras tinham que se acalmar. A maioria daquelas meninas tratava a missa como um simples dever a ser descartado, mas eu, fosse o que fosse, encontrava permanência no afastamento do mundo e na linguagem do ritual. O cheiro do incenso atingia fundo dentro de mim e eliminava a exterioridade do que eu via, tornando tudo parte daquele perfume que se imprimiu na minha alma como minha identidade.
No mundo lá fora, eu estava sempre desorientada porque não conseguia contextualizar o que registrava, como se nada que eu realmente notava se relacionasse ao espaço em que se encontrava ou `as outras coisas `a sua volta. Assim, nunca sabia o que levava ao que, até que a repetição de seguir outros andando entre aquelas coisas se revelasse como um caminho. Sempre fui muito imediata para estar na posição de espectador e ter a distância que nos permite avaliar o que vemos em relação ao que está a sua volta. O que eu notava era uma extensão de mim mesma, ou uma ilustração do que eu sentia naquele momento. A exterioridade era uma imensidão para sempre além de mim, e em maravilhamento, eu era uma garotinha que dava a impressão de ter alguma deficiência, num excesso de introspecção que muitas vezes levou papai a pensar que eu era autista.
Como uma ironia que me fazia sentir não merecedora de pertencer ao Sagrado Coração, a escola era linda. Constava de três edifícios e jardins em níveis diferentes sobre a mesma colina. Como as aulas de religião infligiam um terrível medo do pecado e do diabo, e as empregadas e a babá adoravam perpetuar aquele medo, eu, sem ter mamãe `a volta para dissipar aquela tortura mental, vivia aterrorizada. O mundo imaginário que tinha em comum com Edgar desapareceu, pois vovó só permitia que eu brincasse com ele e outros meninos da vizinhança durante uma hora depois do colégio. Daí, devia ir fazer dever de casa, com a ajuda da costureira, que tinha mais preparo acadêmico do que a babá. Ela tinha o maior orgulho ao se dizer “neurótica”, e tomava qualquer pergunta da minha parte como uma dúvida do seu conhecimento. Começava a gritar e a dizer que sabia o que estava fazendo, e eu calava o bico, sentindo-me aliviada ao vê-la sossegar, e a lição que fosse pro inferno.
Ela adorava se espraiar na morte de Tiradentes, quando o assunto era História do Brasil. Descrevia como era a forca, o fato da vítima enforcada botar a língua de fora e virar caveira. A repulsa que eu sentia por aquilo me tornava ainda mais curiosa para saber mais. Parece que há uma perversidade na própria natureza da consciência, no fato de que cresulta de uma divisão entre o que é e o que não é, conhecendo o ser através do não ser, a luz através da escuridão e vice-versa. A interdependência de extremos na sua própria oposição parece fazer com que ambos ganhem o mesmo valor, e muitas vezes o que repudiamos passa a ser atraente. Assim, como que à beira de um buraco negro, eu me deixava engolir no vórtex do medo, e até o caminho do colégio no carro que o motorista dirigia me assustava.
O primeiro patamar da escola só podia ser alcançado depois que ele manobrasse o carro pra frente e pra trás na estrada estreita da colina, para poder virar na curva mais íngreme e fechada antes de chegar `a reta final que desembocava no jardim de entrada. Devido ao reduzido jogo do veículo, essa manobra o colocava por alguns segundos de frente pra beira da estrada, quando só o céu aparecia pela janela frontal, como se houvesse um vazio sob nós prestes a nos engolir caso o motorista fizesse algum mínimo erro ao calcular o espaço que nos era disponível. Mas dali mesmo eu podia ver, lá no pique da curva, entre a estrada e o nada lá embaixo, uma imagem de Cristo apontando para o sagrado coração inchado no seu peito, coroado pelos espinhos, derramando sangue e espirrando fogo. Me agarrava de longe com aquele coração, com aquela dor que era a doçura de acolher, chamar e garantir. Mas a urgência de me salvar com ele ainda me tornava mais consciente do meu medo.
Durante os segundos que o carro levava manobrando e virando na curva estreita para finalmente chegar ao patamar, aquele medo tomava conta de mim e me dava certeza de que iríamos mergulhar no vazio. Ir para o Sagrado Coração era pra mim uma questão de sobreviver antes de conseguir chegar lá e encarar a ameaça do dia escolar, com a minha inadequação e consciência de ser silenciosamente criticada por todos. Sendo uma menina supertímida e sem amigos, numa posição de inferioridade e ridículo no primeiro lugar em que fui jogada fora de casa, era como ser uma órfã abandonada num mundo injusto e hostil.
Outro vexame que vovó me fazia passar era no dia da caridade, quando as freiras pediam que nós doássemos roupas, brinquedos ou até mesmo dinheiro, para uma instituição que ajudavam. Nessa ocasião, uma delas ficava num canto do jardim de entrada, diante de um grande saco vazio em que colocaria o que as meninas lhe entregassem. Vovó sempre me dava a mesma goiabada que tinha forma de tijolo e era feita num sítio de agricultura que vovô tinha fora da cidade. Embora goiabada seja a sobremesa mais acessível no Brasil, vovó atribuía à que eu iria doar a propriedade mágica de compensar qualquer coisa por não ser industrializada, e pelo fato ainda mais importante de nada lhe custar. Aquele pedaço solido de doce era embrulhado num papel de padaria e me era entregue logo antes da partida pro colégio, com a recomendação de que eu não o enfiasse na minha mala. Levava então a “doação” debaixo do meu braço, e devido ao calor e`a pressão contra o meu corpo, ele ficava completamente torto antes que eu pudesse entregá-lo. Naquele momento, cada menina recebia agradecimentos sorridentes da freira ao lhe dar sua doação, enquanto eu, com o meu doce torto, ouvia um seco e apressado “obrigado”, que soava mais como uma ordem que eu saísse do caminho para dar lugar a quem fizesse diferença.
Mas a maior humilhação era a entrega dos boletins pela freira disciplinária, a que todas nos temíamos. Ela vinha pra classe com aquela pilha de livretos verdes com os nossos nomes, interrompia a lição e começava a chamar as meninas a partir da que tivera primeiro lugar com suas notas, em ordem decrescente até a última, que era sempre eu. Nos quatro primeiros lugares a classe toda aplaudia, sossegava nos nomes seguintes, e transmitia um desprezo mundo quando ouviam o meu nome e viam eu sair da última fila, onde escolhera o meu lugar para não ser notada, até a mesa da professora lá na frente, onde a freira ali de pé entregava os boletins.
Eu fora aceita no primeiro ano sem preparo nenhum. Até mesmo seguir as explicações para o que devíamos aprender era tão difícil que eu nem conseguia relacionar o que eu não sabia com o que ouvia, como se estivesse pelejando com uma língua desconhecida. Afora isso, eu tinha uma síndrome aguda de ADD, e naquele tempo, déficit de atenção não era considerado involuntário. Então, quando a caminho do meu boletim, eu sentia a injustiça e o absurdo de tudo aquilo como se estivesse pisando o chão de um planeta diferente.
Raras vezes eu era notada favoravelmente naquele colégio. Isso acontecia quando o padre que era confessor de todas aquelas freiras pedia para me ver. Ele ficou amigo de papai por lhe encomendar esculturas sacras, até mesmo para o cardeal, sem nunca ter sido cobrado por nenhuma. Chegou a almoçar com meus pais muitas vezes, e passou a me chamar de “minha sobrinha”. A primeira vez em que o vi no colégio, eu estava na fila com minha classe sob o sol quente de verão, em direção `a sala de aula. Antes de vê-lo se aproximar, senti a mão da freira temida sob a minha cabeça, e ouvi ela dizer num tom de voz caloroso e inacreditável: “Aqui esta sua sobrinha Padre Schubert”. Quando ele chegou perto de mim, ela continuou: “Sim, ela é uma boa menina, ótima, aliás!”. Minhas colegas se viraram para me olhar, do começo e do final da fila. Até mesmo as duas grandonas de quem todas nos tínhamos medo. Como eram as mais altas, eram sempre as últimas na fila. A atenção do padre e da freira me deram uma importância que embora fora do comum e superficial, me fez sentir como se eu tivesse sempre sido querida de todos no colégio.
“Gosto muito dela” disse o padre. Naquele mesmo momento, a imagem daquele casal religioso, ambos nus e se encarando, apareceu na minha cabeça. Eu nunca tinha visto um homem adulto nu, e o órgão sexual do padre apareceu como uma concentrada escuridão sem forma. O corpo da freira tinha a sua complexão amarelada, e seus seios e área púbica eram como os da babá, que eu um dia vira de soslaio saindo do chuveiro, quando a toalha com que se enrolara afrouxou e lhe caiu pelas pernas. Eu ainda não sabia que a sexualidade é uma função biológica da vida, e o fato de que as pessoas tinham que manter seu bumbum e a área da frente proibida `a vista, me fez olhar pra ela como uma fonte de pecado. Mas quanto mais eu lutava contra o que aparecia na minha cabeça, mais a imagem se afirmava e se repetia. Horrorizada comigo mesma por ser capaz de ter aquele pensamento, nem por isso o padre e a freira deixavam de se encarar dentro da minha cabeça. Na pequena distância entre eles havia uma dimensão de sacrilégio e a ameaça de se aproximarem e algo terrível acontecer. Como eu podia ser tão vil a ponto de responder a gentileza dos dois em vê-los dentro de mim se mostrando de um jeito que só mesmo criminosos que iam pra prisão deviam fazer? “Desculpai-me Deus! Jesus, tirai isso da minha cabeça” (eu já havia aprendido a me dirigir `a divindade na segunda pessoa do plural).
Mas quanto mais eu suplicava por perdão, mais a imagem se afirmava ou se repetia. “Não”, comecei a gritar em pensamento contra ela, alternando meu esforço de negá-la com pedidos mais e mais frenéticos a Deus e a Jesus para que fosse perdoada. O dia de nossa primeira comunhão se aproximava e esse perdão era urgente. Enquanto o padre e a freira trocaram palavras que eu já nem bem podia escutar, as meninas grandonas ousaram se aproximar para ouvir. Aquelas duas estavam sempre tentando me amedrontar, caçoando de mim entre si, enquanto eu apressava o passo e fingia não ouvir. Mas a partir de então, passei a temer meus pensamentos mais do que elas!
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