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Foto do escritorLeo Viana

O VELHO JORNALISTA



O Pita era rato de redação. Formado na escola da vida, estudou de verdade só até o final do clássico, que era como se chamava o ensino médio naqueles tempos idos. Era bom de texto e foi levado pelo pai pro ambiente do jornal.

 

As redações eram ambientes difíceis de imaginar nos dias de hoje. Num mundo sem computadores pessoais, as pesquisas eram feitas a campo o tempo todo e o grande salão onde geralmente se concentravam os jornalistas era dominado pelo som ininterrupto das máquinas de escrever. Era todo um universo sem Apple e Microsoft, mas carregado de Remingtons e Olivettis.


 As máquinas eram parte fundamental daquele ecossistema, mas havia também a tensão contínua do entra e sai e dos gritos que acompanhavam o fim da redação de uma matéria e seu encaminhamento para a revisão ou para a edição, todo um universo que envolvia a copidescagem, a montagem do jornal, a diagramação e mais um monte de trabalhos feitos de modo mecânico e braçal. 


Faltou falar do cigarro e do uísque que muitos guardavam nas gavetas pra compensar o estresse diário, em geral estimulado por doses generosas de café. Os personagens também eram variados e interessantes. Nem sempre contribuíam para o bom funcionamento da redação, maseram parte do negócio. Podia ser um jogador de futebol de folga, um músico meio esquecido pelo público, um escritor querendo mostrar um livro novo e convencer algum jornalista a fazer uma bela resenha pro jornal de sábado, um ator ou atriz sem emprego querendo uma nota no jornal pra sair do ostracismo. As portas abertas das redações comportavam tudo. 


O Pita chegou cedo a esse universo. Começou a fumar aos 17 e beber uísque a partir do primeiro salário, com a mesma idade. O pai era contínuo. No jornal, levava os textos dos jornalistas para a revisão e edição. Só os grandes jornais podiam ter uma pessoa pra essa função. Nos menores, cada um que se virasse. Mas havia grandes redações. Apaixonado por mitologia grega, parou de estudar cedo pra sustentar a casa e entrou como auxiliar de serviços gerais no conglomerado de comunicação, lá pelos tempos da segunda guerra. Acabou se casando cedo pra sair da casa dos pais e logo nasceu o Pita. Pitágoras era o nome, pra desespero da mãe e alegria dos coleguinhas de escola que faziam todas as variações possíveis em cima do inusitado nome.


E isso bem antes que chegasse a época de estudar o famoso teorema que tem o nome do matemático grego. Mas isso tudo é só pra apresentar o Pita. O pai nunca passou da condição de contínuo. Gostava do ambiente, das pessoas, da animação. Apesar disso não virou jornalista, mesmo quando a formação acadêmica não era obrigatória para a atividade. Lia muito, mas nunca se interessou por escrever. Já o Pita, desde muito cedo foi um “produtor de conteúdo”, como se diz agora. E fez carreira bonita. Conviveu com gênios da redação. Viu Nelson Rodrigues, Antônio Maria, Rubem Fonseca, Jaguar, Sergio Cabral, Nelson Mota. 


Cobriu a guerra do Vietnã, o genocídio de Ruanda, foi ver lançamento de foguetes em Cabo Canaveral, atravessou a Transamazônica. Cobriu o tricampeonato no México, os atentados na olimpíada de Berlim, as ditaduras latinoamericanas, os festivais de música. Flertou com o Pasquim, publicou mensagens cifradas em textos de jornal. O Pita foi um herói. Viu Luis Fernando Veríssimo e Rui Castro começarem, viu Luis Pimentel chegar da Bahia, quase embarcou com João Saldanha pra Itália em sua última viagem. 


E o Pita estava sendo homenageado por um turma de formandos em jornalismo de uma grande universidade do Rio de Janeiro.


Não conseguia entender o porquê da homenagem. Era a antítese dos jornalistas contemporâneos. Tinha frequentado redações onde volta e meia um gato pegava um rato entre os papeis. Ratos que eram atraídos pelos restos de marmitas ou sanduíches não raro largados em gavetas ou armários num momento de correria pra cobrir um acidente ou coisa ainda mais ou menos séria e urgente. Não se imaginava contando experiências pra jovens de classe média que passariam a vida em celulares ou computadores, em geral longe do fato real, produzindo notas rápidas, de poucos caracteres, pra um público que tinha perdido o gosto pela leitura.


 Produzem seus próprios vídeos, diante de uma estante de livros que não leram ou de um fundo gerado por computador e comentam os mais diversos assuntos a partir de uma base teórica disponível no telefone mesmo. Não seria nem educado lembrar dos tempos de um Maracanã com geral e duzentas mil pessoas espremidas gritando pela seleção ou por um dos grandes times cariocas. Eles conhecem um Maracanã que mal comporta 65 mil pagantes. Não seria de bom tom lembrar do fumo em ambiente fechado, da fumaça que dominava as redações, ambiente masculino e até preconceituoso.


De repente, se viu velho. Representava algo que não existia mais, era uma relíquia ambulante, um torcedor de Garrincha, um veterano de guerra como aqueles que cada vez em menor número comparecem à comemoração do dia D ou às paradas militares. Era como o bisavô daqueles meninos e meninas.


No dia fatal, encheu-se de coragem, café, meio comprimido ansiolítico, o da pressão, meia dose de uísque e foi.


Acreditava na boa vontade dos meninos e meninas. Se eles queriam homenagear um velho rato das redações, talvez estivessem querendo readquirir o gosto pela apuração dos fatos, pela tensão da publicação de uma matéria, pelo aprendizado prático que marcava a formação dos jornalistas do tempo dele.


Subiu no palco da formatura ajudado por um jovem professor, que fez uma saudação de respeito.

Chorou algumas lágrimas discretas enquanto ouvia os discursos de homenagem. Sabiam da vida dele, tinham pesquisado mesmo. Lembraram fatos relevantes. Os textos tinham conteúdo. A forma podia não ser a melhor, tinha uma indecisão de estilo entre o formal e o informal, mas passava. 


Quando foi chamado a falar, levantou-se com a dificuldade dos velhos fumantes sedentários, caminhou alguns passos até o microfone, pigarreou, saudou a mesa, agradeceu, falou algumas palavras introdutórias, lamentou os momentos que vivemos, o papel feio que parte da imprensa faz, a volta de projetos políticos que se pensava derrotados desde a segunda guerra. Então permaneceu alguns segundos em silêncio emocionado, lembrou da gritaria e dos palavrões que dominavam as velhas redações e gritou com as forças que lhe restavam:


- Escrevam verdades, porra!!!

Foi aplaudido de pé.

 

Rio de Janeiro, junho de 2024.


 

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