OPOSTOS
Quando o Wilson e a Walkiria se conheceram, além das piadas óbvias, agravadas pelo fato de terem se conhecido numa aula de física em que se falava de potência em Watts, rolou mesmo uma identificação forte, além da concentração de “w”. Não poderiam ser mais diferentes, ao menos numa primeira camada. Mas foi a fisica mesmo quem sempre insistiu numa atração entre opostos.
A Walkiria, apesar do nome e das roupinhas surradas que remetiam mais a carência que a estilo, era de família muito rica. Tinha entrado na engenharia pra subverter a lógica da família, que formava economistas e advogados há gerações pra defender os bensacumulados. Também não seria médica por falta de identificação com o tema e nem artista ou arquiteta pra não parecer a “esteta” do clã.
Dinheiro pode comprar cultura, apesar de nem sempre fazê-lo. Não seria ela a ter a responsabilidade de parecer financiada pra conferir cultura a quem só pensava no próprio patrimônio material. Resolveu se tornar engenheira pra tentar construir um caminho próprio. Pensava até – sacrilégio!! – em fazer um concurso público e trabalhar em estradas, ou numa prefeitura, coisa assim, sem glamour, talvez de botas e colete com faixas cítricas e fosforescentes.
Defesa Civil!! Taí! Era o que mais almejava. Ainda seria útil eventualmente salvando pessoas em desabamentos, alagamentos, desastres em geral ou prevenindo essas mesmas tragédias. Não queria ser uma socialite fútil como as primas ricas. Era um projeto pra vida.
O Wilson tinha a trajetória oposta. Veio da periferia e ralou muito em trem lotado, escola ruim, noite virada e pré-vestibular comunitário pra entrar na quinta reclassificação na federal. Sonhava ser engenheiro e desde menino era quem mais entendia, entre os seis filhos da família, dos acertos e remendos que a casa exigia.
A ralação deu resultado e agora ia pro segundo ano. Superava as limitações com horas intermináveis de estudo. O curso de tempo integral complicava a vida pra continuar trabalhandor e o CR no limite dificultava o obtenção de bolsas, apesar de não ter reprovações.
Tudo bem. Usava o tempo disponível pra estudar e guardava cada centavo que um tio, pouco mais abastado, dono de um comércio modesto, lhe dava de mesada por reconhecer o esforço do sobrinho, primeiro da família a chegar tão longe. Ganhava também roupas, o que o fazia andar sempre como se fosse domingo, com roupa de missa e arrumadinho, calças passadas, camisas sem nenhum amassado. Quase estranho dentre os alunos da universidade, onde a regra passa muito mais pela transgressão. O encontro aconteceu noexercício em dupla diante da bancada do laboratório de física. O destino aproximou os opostos. O professor determinou a formação de duplas aleatórias e o acaso fez o resto.
O Wilson, tímido e surpreso, não pode deixar de reparar na menina bonita e desenvolta, que se mostrou muito simpática. Ela também não escondia, no olhar curioso, o estranhamento com a figura com que dividia a bancada. Não eram exatamente como “O Tímido e a Manequim”, samba delicioso do Paulinho da Viola, porque ele não tocava cavaquinho e ela não fazia desfiles em Paris, mas havia muito de inusitado ali, ainda que, na situação presente, fossem ambos apenas estudantes do segundo ano de engenharia.
O trabalho em dupla tinha desdobramentos e a apresentação do relatório na aula seguinte deveria ser dividido entre os dois, bem como, claro, a elaboração de um exercício aplicado envolvendo os conceitos vistos no laboratório. Marcaram na biblioteca, no dia seguinte à tarde, quando ambos tinham um razoável intervalo entre as aulas.
A Walkiria tinha trocado as roupas, mas mantido a vibe hippie chic surradinha. O Wilson também não mudava muito, mas a camisa por dentro da calça com vinco e osapato engraxado remetiam aos anos 70 e arrancaram um sorriso dela logo na chegada. Já estavam, afinal, no século XXI.
Aquele foi o primeiro de muitos exercícios em dupla, pra resumir.
O namoro engrenou após alguma insistência dela e parece ser pra sempre. A família dele a conheceuprimeiro. A gente simpática da periferia fez de tudo pra agradar. E agradou. A Walkiria não conhecia de perto aquele mundo de escassez e perrengue. Não faltava comida, mas faltava espaço, lazer, aceso à cultura e serviços básicos que, de tão básicos, passavam indiferentes no mundo em que ela, Walkiria, vivia. Nunca se preocupou, objetivamente, com coleta de lixo ou saneamento. Seus médicos estavam sempre à disposição. O muquifo em que se apertavam os familiares do Wilson cabia na sala de estar da casa dela. Sabia que aquilo existia, mas via na tv, no cinema, nos livros e jornais, no papel ou nas telas. Nunca com todos os cinco sentidos imersos ali.
Não fugiu, no entanto. Pisou na lama, comeu muito, dançou um forró, ouviu samba e até arriscou cantar na roda que os amigos do Wilson organizaram. Era o aniversário de um dos irmãos.
Não tinha problemas com glúten, lactose ou carne vermelha e gostou foi muito do tempero de tudo o que comeu. Saiu feliz e apaixonada da periferia.
A visita do Wilson à casa dela foi mais tensa. Além do tempo que levou pra que acontecesse. A família era complicada. Os ricos são complicados. Ela não era a filha dos sonhos, tinha se metido naquele antro que era a universidade federal, andava com gente esquisita, vestia roupas esquisitas. Tinha toda a liberdade do mundo, isso era verdade. Era amada pela família, mas não gozava da confiança deles. Tinha se desviado demais da linha que delimita o que chamavam de normalidade. Continuava filha e não seria deserdada, mas os dois irmãos o advogado e o economista, eram a esperança e as apostas da família para a manutenção do que eram e pretendiam continuar sendo.
A Walkiria era injustamente avaliada como despesa e não como investimento. O desconforto dela, ainda que amasse a família, quase impediu a visita. Mas acabou levando o Wilson ao casarão. Antes, porém, insistiu em fazer algumas considerações epreparar o espírito dele. Jamais tinha deixado claro o tamanho da distância social que os separava e não saberia explicar teoricamente. Arrependeu-se de não ter saído pra morarsozinha num apartamento. Pouparia todo aquele constrangimento. Não teve coragem de propor um “banho de loja” no Wilson. Podia melindrar o namorado. Avisou, no caminho, que a família era rica e estranha, mas que ele não ligasse.
O carro de aplicativo os deixou no portão do terreno arborizado e cruzaram o pórtico. A cancela foi acionada por reconhecimento facial.
Pela alameda sinuosa de palmeiras, caminharam por alguns poucos minutos até que a grande casa modernista apareceu, com a moldura da mata. Seguranças atentos, mas discretos, observavam tudo e notaram o estranhamento do acompanhante da filha do patrão.
O Wilson estava entre chocado e oprimido com a opulência do que via, mas tentava fingir costume. Entraram na casa e, apesar do acordo prévio, de ter combinado com alguma sntecedencia, foi informada por uma empregada que a mãe viajou às pressas para socorrer uma amiga em Roma e deixou um beijo e um pedido de desculpas.
O pai e os irmãos estavam numa “rodada de negócios” que a mesma empregada não soube explicar. Walkiria e Wilson, cada um a seu modo estavam, no fundo, aliviados com o desencontro. Almoçaram, passearam no jardim, ela juntou umas roupas e agora sim, estava definitivamente de saída. Num acordo, foram para um hotel no Centro. Ela não queria, de imediato, uma imersão tão profunda na periferia.
Mas não descartou a ideia.
Num primeiro momento o melhor seria mesmo cada um ceder um pouco.
Ela mantém contato com a família, eles foram ao casamento, deram o apartamento de presente, mas mantém uma distância formal. Wilson virou professor da universidade e ganha mais que a Walkiria, que realizou o sonho de de trabalhar na defesa civil. Moram na zona norte e estão planejando filhos.
- Se eu os conheço? Não. Nem sei se existem. Só achei que a história seria verossímil, ainda que essa chance de interseção de classes seja remota. Não se sabe se serão “felizes para sempre” como nos contos de fada. Talvez seja muita pretensão. Mas não deixa de ser, praticamente uma fábula, se considerada a desigualdade que marca a sociedade brasileira.
Enfim, reflexões...
Rio de Janeiro, novembro de 2024.
A cultura e a economia criativa possuem um papel crucial no desenvolvimento de comunidades pobres e países periféricos, pois oferecem ferramentas para a geração de emprego, renda e inclusão social. Por meio da valorização de saberes locais e da promoção de talentos artísticos, essas áreas podem transformar as comunidades, fortalecendo a autoestima e criando oportunidades econômicas sustentáveis. Atividades como música, artesanato, gastronomia, design e audiovisual não apenas estimulam a criatividade, mas também geram cadeias produtivas que movimentam a economia local.
A Cedro Rosa Digital tem desempenhado um papel inovador nesse cenário ao se tornar uma plataforma global de certificação e distribuição de músicas independentes. Fundada pelo produtor e compositor Antonio Galante, a Cedro Rosa representa artistas de cinco continentes, promovendo diversidade e representatividade cultural.
Escute essa playlist da Cedro Rosa!
O sistema CERTIFICA SOM, em desenvolvimento com o apoio de instituições brasileiras renomadas como a UFCG, EMBRAPII, SEBRAE e o Ministério da Ciência e Tecnologia, visa fornecer dados precisos sobre as músicas, garantindo que compositores, intérpretes e técnicos sejam devidamente creditados e recebam direitos autorais internacionais. Essa inovação fortalece o mercado musical e dá aos artistas independentes a possibilidade de alcançar novos públicos e fontes de renda no Brasil e no exterior.
Escute essa playlist de Samba e MPB
O portal CRIATIVOS!, por sua vez, tem sido um ponto de encontro essencial para a disseminação de arte, cultura, ciência, tecnologia e trocas de conhecimento. Atuando há quatro anos sem interrupções, o portal reúne colaboradores de altíssima qualidade que discutem temas relevantes e fomentam debates sobre a economia criativa e a inovação cultural.
Dessa forma, CRIATIVOS! tem contribuído para a valorização da cultura e da criatividade como motores do desenvolvimento social e econômico, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo.
Comments