Os Vencedores da Corrida
Cresci numa família de uma sensibilidade crítica aguçada, e sempre rica em humor. Além disso, a crítica constante não era só dirigida a outros que não fossem nós mesmos, bem ao contrário. A auto sátira de todos nós era talvez ainda mais prevalente do que ridicularizarmos os outros.
Eu era uma garota considerada bonita, mas nas sequencias cômicas que meu irmão Edgar desenhava em torno da minha adolescência alcoólatra, eu aparecia como um ser anguloso, sem formas femininas nem qualquer suavidade, sem, na verdade, nada atraente. Ainda por cima, mostrando reações frenéticas quando naqueles desenhos, aparecia sem nem mais uma garrafa de uísque, enquanto as que eu já tinha esvaziado (e nisso Edgar exagerava a quantidade) se viam escondidas debaixo de minha cama. Recostada sobre esta com displicência, eu expressava nas caricaturas de Edgar uma alienação abusada, chamando aos gritos algum dos empregados que nos serviam para que fosse comprar o alívio líquido cuja reserva, sabe Deus como, tinham ousado negligenciar.
Quando Edgar me mostrou os quadrinhos em que desenhou tudo isso, morri de rir mesmo me achando feia, absurda e patética. Na verdade, nunca tinha mandado nenhum dos empregados comprar uísque pra mim e isso foi um dos exageros de Edgar, talvez pra me mostrar como eu era folgada ao chamá-los lá de longe só para me trazer um copo de água. Mas essa folga paradoxalmente resultava da minha dificuldade da em reconhecer, em olhar de frente mesmo o fato de que outros seres humanos me serviam, de modo que eu nem bem podia encará-los e os tratava como se fossem máquinas. A crítica de Edgar fez a ficha cair.
Em relação aos caras de quem eu gostava, a família, que como qualquer família esperava que o “principe encantado” viesse quebrar feitiços, era impiedosa mas sempre com humor irresistível, mais ainda quando percebia que aqueles que eu desejava se vendiam caro. Conseguiam transformar em comicidade a rejeição que eu sentia da parte deles, principalmente através das séries que Edgar inventava usando-os como personagens principais, e nos apelidos espirituosos que papai lhes dava. Chamava um deles de “diretor de circo” porque o garoto usava umas botas até os joelhos e vivia com um chicote na mão porque andava a cavalo. Um outro, cuja estatura pequena era diametralmente oposta ao tamanho de sua arrogância, papai se referia a ele como “o Nanico”.
O humor, mais do que um simples caçoar, mistura percepção pessoal e validez objetiva, imersão e distanciamento, assim como acontece com a arte, tendo também como esta, uma realidade que transcende e assim exorciza a polaridade do julgamento, do “ou isso” “ou aquilo”, quer dizer, de ter que achar as pessoas ou definitivamente ruins, ou boas, feias ou bonitas. Então, ao mesmo tempo em que eu me enturmava com a crítica feita pela família, continuava a gostar dos tais caras, e como se eu fosse duas pessoas igualmente válidas, quando não ria deles, sofria por sua causa, do mesmo modo como também podia rir de mim mesma e ao mesmo tempo me levar a sério. Devo confessar que a isso eu sou grata.
Mamãe e Edgar eram mais prolíficos no “tiroteio” crítico do que papai, pois ilustravam seus achados com caricaturas de primeira ordem. Mas quando o “velho”, mais conciso e reservado, decidia se manifestar, em geral fazendo de si próprio e de nós seus alvos frequentes, a hilaridade que causava o absolvia e ele de chato ficava até fofo.
Tudo que falei é introdução para uma das críticas mais histericamente hilárias que nos fez. Quando viu que eu e Edgar não corríamos para ganhar dinheiro e a família já não era rica como uma vez pensou ser, se revoltou contra nós mesmo sendo ele próprio um artista que praticamente agia como se fosse pecado vender o que criava. Certa vez, ao sair da mesa em que acabávamos de almoçar, jurado como era à biologia e suficientemente educado para jogar, ou fingir jogar, toda a causa “física” do nosso problema sobre si próprio, teve a cara de pau de dizer à mamãe na nossa frente:
” Os meus espermatozoides devem ser péssimos! Se os que ganharam a corrida resultaram nesses filhos imagina só o resto!”
E mamãe nos disse quando ele se afastou:
“O velho é chato mas engraçado...”
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