PARA QUE SERVE ISSO? / Utilidade Lúdica
O apito da Maria Fumaça soou na hora exata. De imediato as mãos dos passageiros começaram a acenar, celebrando a viagem no trem turístico. Um cão se aproximou do trem e acenou com um latido. As pessoas à margem da estrada de ferro davam um adeus turístico, instantâneo, expressando algum tipo de agradecimento pelo trem estar cortando aquele início de tarde fria, com céu muito azul.
A alegria dos turistas adultos esconde sua vergonha atrás da espontaneidade do aceno das crianças que acham naquilo uma graça enorme, embora, ao mesmo tempo, soe tão sem graça aos olhos de quem tem seu mundo de doutor, de padre ou de policial. Mas para que que serve tudo isso? Virar turista e fazer coisas que justifiquem o preço da passagem cara do trem, que promove a economia local e sustenta uma roda de interesses tão pouco espontâneos?
Ah! / mas que sujeito chato sou eu/ que não acha nada engraçado/ macaco, praia, carro/ jornal, tobogã/ eu acho tudo isso um saco... sou como o velho Raul Seixas ao cantar seu Ouro de Tolo. Ainda bem que, por outro lado, as crianças, descoladas dessas responsabilidades do mundo adulto, por mais conscientes e inteligentes que sejam, sabendo como as coisas funcionam, percebem na gratuidade desses gestos algo tão revolucionário quanto a letra dessa canção.
Mas a vida não é filme ou poema, e você não entendeu. E. por mais que abrace a rebeldia do grande Raul Seixas, por mais que entenda e concorde com o significado da letra da música, peço licença para que, às vezes, utilizar menos de dez por cento da minha cabeça animal possa ser um ato de rebeldia e de resistência à nossa ignorância, ao nosso aparente despropósito intelectual politicamente correto. Talvez, por isso, tenho me permitido rir de coisas idiotas, depois de me tornar pai e, principalmente, depois de ter netos.
Tenho explorado os menos de dez por cento da minha cabeça animal, tirando fotos à beça e comprando lembranças turísticas que não servem para nada, mas que, para mim, funcionam como agulhas de acupuntura social, atingindo pontos fora da ordem normal e tranquilizando o sorriso por desfrutar de um simples domingo, tão comum, mas infinito.
E, quando falo de domingo, lembro logo da nossa paixão nacional, o futebol, de que tanto gostava Nelson Rodrigues. Quer coisa mais boba que assistir ao jogo aos domingos, indo com a camisa do seu clube no Maracanã? Ouvir os fogos, xingar o juiz, gritar o nome de seu jogador preferido, cantar as músicas mais loucas, comemorar o gol abraçando um desconhecido... Para que serve isso? Talvez a resposta esteja submersa no mundo pragmático, liberal, capitalista, que sabe que há, por trás dos dez por cento de nossa cabeça animal, muitas conexões sem sentido que geram no plano cartesiano muita riqueza.
Os interesses do mundo adulto sabem que o nosso limite biológico é rico e deslumbrante... Basta olhar a menina de trança, com um sorriso onde falta o primeiro dentinho de leite... basta olhar essa menina jogar um beijo para o guarda ferroviário que garante a segurança dos passageiros e transeuntes... basta olhar o cão perseguindo a locomotiva por quilômetros... basta olhar o drible e o gol cobrindo o goleiro... basta exercitar o olhar que você vai se deslumbrar e vai descobrir para que serve tudo isso?
Cedro Rosa Digital: Um Farol de Criatividade e Desenvolvimento Cultural
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