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Portais


  

Papai achava que eu era autista, enquanto mamãe, que era o oposto, lhe dizia que eu era uma reencarnação do antigo Egito e que por isso o meu ritmo era excessivamente contemplativo. Não preciso dizer que os dois pensavam de maneiras opostas e olhavam para o mundo de maneiras opostas. Mas cada um deles tinha alguma razão.


Sempre fui grudada comigo mesma, e dirigir minha atenção para o mundo externo requeria esforço. E talvez por isso, sempre fui devagar, e sem sentido de direção. Meu último analista disse que eu certamente tenho alguma coisa, talvez uma ‘dislexia espacial’ (nem sei se isso existe). Mas seja lá o que for, só a essa altura da vida me dou conta de que os lugares mais felizes para mim são portais. E o que são portais?


Vim a concordar com uma amiga de meu filho, que cirurgia, por exemplo, é um deles. Este ano, retirei os implantes dos seios, e já sabia que seria uma recuperação longa e complicada. Mas por aqui se fala muito numa tal síndrome causada pelo silicone, e eu tinha sintomas dessa síndrome. Além disso, depois de dezessete anos com aquele plástico dentro de mim, quis experimentar viver sem ele. De novo, a intrusão do artificio na natureza, e aquele já estava ficando crítico.


Vou aqui aproveitando para desaconselhar mulheres que estejam pensando nisso, No mesmo dia da cirurgia, já em casa, essa amiga que citei estava nos visitando, e eu, sob mil remédios pra dor, vários curativos e várias restrições de movimentos, tentei explicar pra ela que eu me encontrava totalmente fora do mundo. Foi então que ela disse que cirurgia é um portal, e disse bem. Primeiro, a anestesia geral já é uma viagem sabe-se lá por onde.


Quando pensamos que tudo fica paralisado e até a nossa respiração tem que ser feita com ajuda do artificio, nos deparamos com um mistério total. Um mistério de termos vivido uma eternidade, sem conhecimento, e sem lembrança, e sem a autonomia dos nossos órgãos. A própria dor, que se segue, e que nos tira da rotina, da autocobrança, e da luz do sol, é uma segunda viagem. Já enquanto castiga, nos deixa livres do jugo da mente. Nossa casa de sempre para de nos apontar atividades aqui e ali, de ter que fazer isso ou aquilo.


E ela que passa a nos dever segurança conforto, sob o aspecto neutro de não pedir nada de nos, ao contrario, passa a nos dever segurança e conforto, e o resto, como o dever de arrumar, ou  aprontar refeições, ou ver que as roupas estejam lavadas e distribuídas, se torna a coisa mais fútil do mundo.


Os efeitos dos analgésicos dão conta de mais uma viagem psicológica, acabando com a nossa noção de tempo. Aluguei uma enfermeira, que me levou `a consulta do dia seguinte, e comentou como eu estava bem havendo sido operada na véspera. ‘Véspera? Que véspera? Isso aconteceu já há muitas semanas!’ pensei.


O mês e meio de recuperação não foi fácil, havia momentos de uma dor lancinante. Porém, estando a minha mente ‘absolvida’ do dever, me lembro desse tempo com saudades.

Outro portal foi quando tive que ir pro hospital com covid. Estava cuspindo sangue quando tossia, mas não precisei de respiração artificial. Fiquei mas fiquei quatro horas com remédio na veia, hidratação, e sei lá mais o que.  Meus olhos estavam roxos, e a febre era alta. Me senti `a beira do outro mundo. Voltei deitada na mala da caminhonete de Chris, entre nossos dois cachorros, e ao ver tudo `a nossa volta com um desapego fenomenal, me senti mais unida e igual a eles do que nunca. Me lembro daquele dia, quando o resto do mundo e do dever deixaram de existir,  como um dos dias melhores da minha vida. Isso foi em 2021, e já tive covid de novo, sem nada demais.


Recentemente, estive no portal maior de todos,, a ayahuasca. Aconteceu há duas semanas, nos dois rituais dessa medicina que rolaram lá em casa, um na sexta e outro no sábado. Eram tudo que esperávamos para zarpar de lá, por causa da obra que está começando. Tendo que fazer as malas e prever os mínimos e mais prosaicos itens que eu precisaria durante tantos dias fora é uma tarefa detestável pra mim, primeiro por causa da necessidade de determinar os objetos de uso que serão necessários, desde os menores e mais corriqueiros aos mais importantes.


Depois, por essa previsão envolver controle sobre as coisas materiais, tipo, onde boto isso, onde já botei aquilo, ou será que ainda não botei em mala nenhuma, como vou lembrar de tanta coisa? E em último lugar, a tarefa me desagrada por me lembrar de como somos dependentes da dimensão material, algo que passa desapercebido quando as coisas estão em seu lugar fixo e, no dia a dia, usamos uma ou outra quando precisamos e de passagem.


Ao contrário disso, juntar todas elas dentro de uma mala, ao tirá-las de seu lugar fixo, nos deparamos, em seu lugar- já que não tem valor em si independentemente de sua utilidade- uma cacofonia visual de funções que ainda mais adultera a natureza de cada uma. Pra dar um exemplo, quem gostaria de ver pares de sandálias em cima de uma mesa de jantar? Se comemos o que está na mesa e pisamos as ruas com nossas sandálias, a superposição de um sobre o outro é promiscua, e , novamente, nos lembra da pura materialidade, sem alma e sem requinte.


Acho que por a tensão de empacotar tantos objetos, a sua concentração e mudança, na confusão que estava a casa, (meu quarto, que não vai precisar ser alterado, virou um guarda moveis) o primeiro ritual de ayahuasca não foi fácil. As visões foram escuras, e o desconforto físico foi enorme. Exausta, pensei que já estava abusando da minha resistência, e no ritual do dia seguinte, considerei me despedir de ayahuasca. Mas tinha que fechar com chave de ouro.  E não é fácil passar a noite do primeiro ritual sob a força dessa medicina, ficar praticamente sem dormir durante o dia seguinte, e participar do seguinte na noite desse dia.


Os participantes do primeiro ficam zanzando pela casa, comendo o que encontram, descansando no chão vazio, cada um por si e Deus por todos. Achei que eu não iria aguentar. Mas algumas horas antes do ritual começar, parecia que o ar ficou mais leve e tudo mais colorido. Ayahuasca tem essas coisas, vem se anunciando aos poucos, antes de ser ingerida. Com surpresa, eu já conseguia conversar com uns e outros; já voltava a me entender. Foi lindo. E com surpresa transcendente, mesmo durante os momentos em que a medicina me fez pensar que eu estava `a beira da morte, me mandou imagens entre as mais detalhadamente lindas que já vi.


Dizem que o mal-estar físico corresponde `a morte do ego, ou da estrutura mental através da qual construímos o que chamamos de ‘realidade’. Nosso pajé explica que essa transição correspondo ao tranco da medicina expandir a consciência, os sentidos, e trazer informações que estão bastante além da nossa percepção normal. Eu, entre outros, já tivemos a experiencia de ouvir sons de distancias incalculáveis, ou de senti-los com a própria pele. Ao expandir os cinco sentidos, ayahuasca frequentemente os mistura, e um funciona pelo outro. Ouve-se com a pele, enxerga-se com o sentimento, e voa-se sem sair do chão.


No auge do mal-estar, fugi pro meu quarto e me atirei na cama, sem saber o que ia acontecer comigo. Mas em meio aquela aflição, vi Pegasus voando ininterruptamente sobre mim, suas asas brancas transmitindo uma substância transcendente, quase liquida, e de uma alvura inigualável, enquanto o movimento de seu voo ascendente transmitia uma delicadeza divina. Eu diria que a concisão das visões de ayahuasca vao bastante além da que mostram as imagens de nossos sonhos, talvez porque ao invés de virem do inconsciente,  vem da expansão da consciência, que alguns curandeiros intelectuais do Peru,  consideram criação da própria medicina. Um deles, que é filosofo e dono do centro Ayahuasca Sabidoria, perto de Pucalpa, chega a dizer que a “mãe ayahuasca sabe a quem agraciar”. Mas outros acham que qualquer pessoa que aguente as viagens difíceis enviadas pela medicina sempre lucra, pois vêem o que escondem de si e que, uma vez trazido `a consciência, traz cura.


Decodificando parte do infinito que vi nesse ritual mais recente, devo considerar a imagem antiga de Cristo que tenho, indicando o seu sagrado coração. Refiro-me a ela como o Príncipe da delicadeza, pois é impressionante como ela expressa a força e o poder de uma delicadeza que só Jesus pode ter, na autoridade da humildade e do amor.


Quanto `a minha` visão Pegasus simboliza a ascensão da alma.  E como cada visão de ayahuasca é uma síntese inesgotável, percebi que na delicadeza divina da ascensão da alma naquele cavalo alado, de uma forca voadora tão sobrenatural, dançante, e potente, quanto doce e visualmente acariciante, estava a presença de Cristo. E nas outras partes do ar `a volta e acima de mim, o Arcanjo Miguel apareceu em vários ângulos, com sua beleza dourada e rodeada por pontos de luz esfuziantes e coloridos.


Tudo isso, enquanto eu me considerava `a beira da morte. Graça divina, ayahuasca faz o milagre que impede o estado crítico do meu corpo influenciar meu pensamento. Se uma vez, na dieta que fiz nos confins da floresta amazônica no Peru, fiquei na pior, devido ao deplorável estado físico em que me encontrei por sentir na pele, devido ao medo que senti, que pensamos com, ou através da carne, e que toda essa história de mente sobre o corpo é um ideal, dessa vez mais recente e algumas outras, me revelaram que nem sempre. Quando a medicina usurpa nossa mente, a carne não conta. O negócio é conseguir se entregar, mesmo no pique do medo, do enjoo, e de qualquer zigue zira. Nessa entrega, o sofrimento e o sublime se encontram, e a gente enxerga a própria liberdade.


Portais são passagens, ou salas de espera entre dois mundos, como a madrugada ou o por do sol. Estão fora do ‘nosso’ mundo e além do tempo, como cirurgias, certos estados hospitalares, convalescências, e momentos de oração. São ocasiões em que nos encontramos com nos mesmos, e como no mais profundo de nos, quando o mundo temporal não interfere, somos livres. Portais são encontros com a liberdade, que é também, o além de nós mesmos a que ayahuasca nos leva pela mão. Pois que além de portal, ayahuasca é espírito.


Portais são encontros com nos mesmos, sem a interferência do mundo do dia a dia; encontros atemporais. Por isso, atualmente, em meio a uma ‘roadtrip’ com minha filha, me encontro num portal,  já que esse tipo de viagem nos tira do mundo da repetição, ao mesmo tempo em que nos faz avançar sobre a pele mutante do mundo da revelação.


 

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