PRINCESA
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Era a primeira vez da Sofia. Menina criada com mimos e sofisticação naquela classe média baixa que tem um filho só, correspondia em gênero, número e grau aos anseios da família. Boa aluna na escola cara, fluente em inglês aos 16, um pouco tarde pra média dos filhos dos amigos.
O fato é que antes disso não seria liberada pra uma viagem sozinha, um pouco pela superproteção e outro tanto pela escassez de recursos, todos gastos com ela mesmo. Frequentava a “alta roda” da sua geração, levada pelos colegas de escola, já que seus pais, mesmo com todo empenho, não tinham cacife pra se associar aos mesmos clubes dos pais das amiguinhas. E se havia uma coisa em que os país da Sofia confiavam, essa coisa era a família das coleguinhas ricas da Sofia. Em suas ambições de ascensão, eles sempre miravam naquelas famílias e em seus endereços maravilhosos. Gente que vivia de frente pro mar na Zona Sul ou em mansões no Alto Leblon, São Conrado ou Jardim Botânico, gente que desconhecia até a existência de pequenos cafofos como o que eles e Sofia moravam, num trecho pouco glamuroso de Botafogo.
E era, como dissemos, a primeira vez da Sofia. O padrinho, bem sucedido, já tinha oferecido uma vez uma viagem a Bariloche. Mas o nível de sucesso da carreira do padrinho, que também era tio, irmão do pai de Sofia, não era aquele que eles mais admiravam ou almejavam. E a origem comum, humilde, fazia com que seus filhos tivessem comportamento aquém daquele desejado para um convívio com a pequena lady na qual depositavam tantas esperanças.
Desta vez não. O pai de uma das melhores amigas, que inclusive tem ascendência francesa, insistiu pra que Sofia fosse com eles pra uma pequena temporada de esqui na Suiça, onde parte da família mantinha um hotel. Tudo pago. Os olhos dos três brilharam. Pai e mãe chegavam mesmo, num quase delírio, a sonhar com a filha encontrando algum príncipe europeu que se encantasse com ela imediatamente e a levasse para viver um conto de fadas, daqueles que tem o casamento transmitido ao vivo pela tv. Devaneios de esperança. Ou expectativa de retorno do investimento, em economês simplificado.
Os preparativos andavam a mil. Agasalhos emprestados dos primos, usados uma única vez, doleira comprada num camelô da Uruguaiana, passaporte tirado às pressas num posto distante, mas sem fila. Mala nova adquirida em suaves prestações na Le Posticheda rua da Carioca, bolsa de mão artesanal pra parecer chique, bijuterias da melhor qualidade, mesmo com a iminência do uso permanente de agasalhos pesados. Até as roupas íntimas foram renovadas. As amigas certamente reparariam caso a Sofia fosse vista por elas com as lingeries baratas que a mãe dela comprava. Eram até confortáveis, mas ela nunca tinha mostrado pra ninguém e não seria na Europa que ela, caso ocorresse uma ocasião, ia aparecer justamente com aquele underwear da rua da Alfândega.
Faltava muito pouco pra viagem. Além das duas filhas do rico promotor da excursão, iriam a Sofia e a Talita, cuja riqueza de família vinha de uma rede de pequenas confecções mantida pelos pais em municípios da Baixada Fluminense, para atendimento a lojas populares – e outras nem tanto – em diversas localidades da RegiãoMetropolitana, incluindo bairros chiques da capital. A Talita era muito querida por todos, mas tinha comportamento inverso ao das outras três, cheias de rapapés e misuras, como se tivessem em permanente avaliação de cursos de etiqueta. A Talita falava palavrões, não tinha modos e só fazia questão da proximidade das amigas enquanto estava na escola. Na maior parte do tempo vivia no subúrbio, entre gente bem mais simples e despachada, incapaz de fingir costume diante de uma situação inusitada.
Já a Sofia, que em quase nada opinava sobre a própria vida, vivia satisfazendo ao desejo de seus pais, que a viam como um investimento de longo prazo, uma espécie de “Tesouro Direto”, cujo resgate, a julgar pelo empenho deles na aproximação da Sofia com os ricos, parecia estar inapelavelmente próximo. As radicais diferenças entre uma e outra deram, por óbvio, em aproximação. Mundos muito diferentes, ligados pelo convívio na escola e pelas amigas em comum, de repente se encontraram e se completam, no projeto da viagem de férias. Ao contrário da Sofia, os pais da Talita pagariam todas as despesasda filha. Apesar de ser considerada pelos pais ricos da escola como um “curiosidade antropológica”, todos sabiam que a condição financeira da Talita era próxima, ou igual,à da maioria dos estudantes da escola rica, sem os apertos da família da Sofia.
Faltava uma semana para o embarque, todas as providências estavam tomadas, quando a Talita propôs para as amigas, todas ali por volta dos 16 anos, uma imersão suburbana. Iriam à casa dela, um apartamento enorme na zona norte e, de lá conheceriam alguns pontos notáveis, levadas por um motorista/segurança que trabalhava pro pai de Talita, e terminariam o dia num ensaio de escola de samba, até quando resistissem. Não foi exatamente simples convencer os pais da zona sul, mas tudo acabou se pacíficando após um telefonema da mãe de Talita, que era absolutamente doce e confiável, apesar da mão de ferro com que conduzia os negócios junto com o marido.
No sábado de manhã o carro pegou as meninas no Leblon, já com a Talita dentro.
Cruzar o túnel rumo à zona norte abriu um mundo novo de observações. Claro que as meninas já tinha ido ao aeroporto internacional, a Angra e outros pontos que exigemtransitar por ali, mas pela primeira vez o entorno era o foco e não só o caminho. Favelas, aglomerados de pequenas casas, calçadas estreitas, carros velhos, fábricas funcionando ou abandonadas, galpões, trens, ônibus. Coisas bonitas também, diversidade, edificações antigas, mas tudo aparentemente menos cuidado do que o que se vê nas áreas mais ricas da cidade. Museus, igrejas antigas, grandes universidades e centros de pesquisa, possíveis objetivos futuros das meninas, eram rodeados por pobreza e condições difíceis de vida. Nunca tinham atentado pra essa contradição espacial. Talita, que era íntima do cenário, ia mostrando as coisas e centralizando a aatenção. Quando chegaram ao apartamento grande e luxuoso, Sofia já não conseguia esconder o tamanho da admiração por Talita. O dia passou rápido com visitas a pontos notáveis e se encerrou com o pôr do sol visto da igreja da Penha, felizmente sem os costumeiros tiroteios que infernizam as favelas do entorno. De volta ao apartamento, descansaram e jantaram para o grand finale, numa escola de samba.
Roupas leves, os pais da Talita juntos com elas e ainda o motorista/segurança, pra garantir a integridade das meninas naquele ambiente inédito, cheio, animado e ruidoso para Sofia e as amigas da zona sul.
Não se sabe exatamente o que se passou na cabecinha da Sofia, mas a visão e os sentidos naquele lugar, mais a proximidade extrema da Talita, que aquela altura já tinha notado o interesse da Sofia, despertaram sensações novas na menininha mimadinha e conformada. Fora da visão dos adultos, transgredindo pela primeira vez na vida, deu um beijo profundo em Talita, como só havia visto antes na televisão.
Correspondida no beijo, declarou seu amor e disse que aquele era o dia mais feliz de sua vida. Não queria mais deixar aquele lugar, aquela gente, aquele som. Queria aprender a sambar, queria viver ali e abandonar aquela vida de aparências que os pais tinham forjado e na qual depositavam suas esperanças de futuro. Talita, bem menos intempestiva, apesar do jeitão despachado, ponderou que elas tinham 16 anos ainda. Havia muita coisa e experiência pra viver, mesmo que a relação pudesse se firmar. Resistiram, viajaram, esquiaram, voltaram, estudaram, mantiveram as aparências e o amor.
Sofia só saiu de casa aos 23 anos, quando concluiu a faculdade de arquitetura, contrariando os pais, que a queriam, no mínimo, médica ou juíza, se não princesa. Talita formou-se em jornalismo na mesma semana. Ambas saíram empregadas da universidade.
Os pais de Talita acompanharam tudo. Os pais de Sofia estranharam e lamentaram o gradual afastamento das famílias ricas por sua filhinha querida e o tanto que ela se aproximava de Talita e da gente carnavalesca das escolas de samba, uma paixão desenvolvida à revelia deles.
Moram juntas, vivem um amor intenso e duradouro já. Desfilam pela vida e pelas escolas de samba. Os pais da Talita entenderam tudo. Os pais da Sofia, apesar da assistência que ela dá, das visitas frequentes, da presença contante de Talita e da felicidade radiante de Sofia, volta e meia perguntam se ela não pretende se casar com um homem de negócios, rico claro, pra dar netos e, claro, remunerar o investimento.
O pior cego, diz o ditado, é aquele que não quer ver.
Rio de Janeiro, fevereiro de 2025.
Disponivel para downloads e trilhas sonoras diversas.
Samba e MPB
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