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RECORDAÇÕES...



Sonhou que acordava e levantava cedo pra pegar o jornal, antes que o cachorro tivesse a mesma ideia e tentasse destruir as notícias, como muitas vezes acontecia. Ao menos no sonho. Gostava muito de ambos, jornal e cachorro, mas sentia uma certa incompatibilidade entre eles. Talvez fosse a atenção que não dedicava ao cachorro durante a leitura. E no domingo, especialmente, a leitura durava horas. Jornalzão, textos de opinião, alguns muito interessantes, outros de dar náuseas, mas lia todos. Lia até os classificados. E eram muitos naquela virada dos 70 para os 80. O Brasil da anistia, quase redemocratização, tinha muita inflação, muito desemprego e também muito emprego, paradoxalmente. A indústria era o nosso maior empregador e a cada dia demandava mais mão de obra especializada. Nem o Senai dava conta da demanda. A globalização não existia e importávamos bem menos do que hoje, ainda que os padrões de consumo já dessem sinal de melhoria. Os jornais eram a maior fonte de informações sobre emprego e sobre tudo mais. 


Nos outros dias da semana podia ler o jornal enquanto ia pro trabalho, no ônibus, no trem. Ou na hora do almoço. 

Aos domingos precisava acordar cedo pra disputar com o cachorro a prioridade. O volume maior de folhas e aquela atenção especial logo fizeram o cachorro se remoer em ciúmes.


A cena do sonho se desenrolava sem surpresas. Já tinha pego o jornal e voltava para terminar as horas de sono, antes de tomar um café e separar os cadernos do jornal pra iniciar a leitura, num ritual quase religioso. A mulher tinha ido à missa e depois à feira, rotina também já estabelecida havia muito tempo. Quando levantava, estavamgeralmente em casa só ele, as crianças e o cachorro. O casal de crianças dormia até bem tarde no domingo, o que era um alívio para a leitura do jornal e a recompensa para eles, que acordavam muito cedo todos os dias para a escola, inclusive no sábado.Sacrificadas, as crianças. Havia todo um discurso, elaborado e reelaborado, afirmando que elas agradeceriam no futuro os sacrifícios passados na infância , especialmente naquilo que se referia à educação. Nunca acreditou muito nisso, mas o sono adicional na manhã de domingo era interessante para todos e valia a paz de ler o jornal.


A mulher chegava da feira por volta das onze e meia. As crianças ainda dormiam. Ou fingiam. Ele mesmo preparava alguma coisa pra elas comerem quando acordassem. Depois guardava as coisas recém chegadas da feira e fazia o almoço, outra tradição dos domingos, único dia em que a mulher tinha folga na cozinha. Consultava receitas, procurava novidades, ingredientes diferentes, sabores alternativos. Viajavam todos na mesma onda. As crianças eram animadas pra comer e gostavam de novidades, ao contrário dos coleguinhas que eventualmente apareciam. A mulher preferia nem saber o que ele estava preparando. Sabia que seria saboroso e diferente, eventualmente exótico, mas sempre interessante.


Acordou, forçado pela incontinência urinária que provavelmente o faria molhar a cama outra vez. Por sorte, houve tempo pra ir até o banheiro. Não corria mais. Acomodara-se com a velhice. Não há mais jornal, nem cachorro. Nem mulher. Os filhos cresceram,formaram-se, casaram e mudaram pra longe. O contato é frequente, mas bem mais virtual que presencial. A redemocratização avançou. Um pouco demais até, parece. Não faz muito que um fascista, misógino, miliciano, corrupto e - como todos os que ostentam essa titulação toda – com discurso patriota, venceu a eleição. Democracia. Mesmo sem ler o jornal diário, acompanhou. Lembra que falaram pra ele.


Nunca foi de cozinhar. O sonho era distópico. Do cachorro que atacava o jornal, lembra bem. Da maioria das outras coisas, não. Bom que ao menos se recorda da pressão na bexiga e em outros órgãos que o lembram de necessidades importantes.


Nomes, endereços e outras informações, o Alzheimer o impede de lembrar.

Lembranças e esquecimentos.

O sonho, aliás,  pode até nem ter sido esse.

 

Rio de Janeiro, abril de 2025.


 

 Cedro Rosa Digital, música certificada.





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