REENCONTRO
-As calçadas da Avenida Rio Branco já viram muita coisa, desde que foram inauguradas com pompa e circunstância em 1906, algum tempo depois da provável sessão espírita em que o Pereira Passos incorporou o “Caboclo Hausmann de les Etoiles et Boulevards” e decidiu copiar Paris aqui nos trópicos. Ficou bem feitinho e tudo, mas toda cópia é fake.
- Desde o desfile de gente vestida como se estivesse em Paris, fazendo o footing sob os inclementes 40 graus que nos visitam em todos os janeiros (e fevereiros, marços, setembros, outubros... Talvez um pouco menos quentes naquela época, mas enfim...), passando pelos índios do Cacique de Ramos, a multidão incontável do Bola Preta, escolas de samba, ranchos e frevos, até os executivos suando em ternos apertados, a passeata dos cem mil, a demolição do Palácio Monroe, as construções e reformas do Theatro Municipal, da Biblioteca Nacional e do Museu de Belas Artes, até a recente – e aparentemente definitiva – implantação do VLT, aquele bonde moderno que dividiu a avenida ao meio ao longo de toda a sua extensão e permite que se transite pelo Centro, com ar condicionado, assistindo ao espetáculo proporcionado por pessoas, edificações, situações, enfim, a vida acontecendo ao nosso lado.
- Como nem tudo são flores, é também às margens da grande avenida que se nota, em detalhes, os momentos de explosão da pobreza, com o terrível aumento na quantidade de gente dormindo nas ruas. E calçadas largas, como as da Rio Branco, possibilitam abrigo para mais gente...
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Enquanto caminhava pela rua da Carioca, rumo à Rio Branco, onde participaria de um debate sobre novas propostas de ocupação para o Centro da Cidade, promovido por uma associação profissional, o Nestor ia formulando o texto que apresentaria. Os tópicos já estavam separados, listados numa folha, como sempre fazia. Não confiava nos eletrônicos, tinha medo de faltar sinal, bateria, sabe-se lá. Vinha sistematizando as ideias, já abalizadas por anos de dedicação ao tema e pela aplicação prática em diversas cidades do mundo. Economista renomado internacionalmente, estava orgulhoso de poder aplicar seus conhecimentos em sua própria cidade, a partir de onde tinha conquistado o respeito do mundo. Foi caminhando pelo Centro do Rio, no passado, que ele teve a ideia de inserir um componente social nos projetos dos centros urbanos pós-modernos, normalmente voltados apenas para os serviços financeiros ou para o entretenimento. Suas teses reverberaram mundo afora e agora eram aplicadas em locais tão diversos como a China, países árabes e metrópoles norte americanas, ainda que seu maior orgulho tenha sido a adoção do modelo de inserção urbana por grandes cidades africanas, cujo crescimento vinha copiando modelos excludentes. Uma carreira de sucesso, a consciência limpa de quem sempre fez o possível para tornar melhor a vida das pessoas, inserir mais e mais gente, da melhor maneira, no que se convencionou chamar de “mercado”, essa máquina de moer gente, avessa à civilidade e que propõe um projeto civilizatório baseado no lucro rápido e fácil. Muitas vezes se sentia pequeno demais, de ação limitada demais, sem possibilidade de contribuir efetivamente, mas cada vez que visitava um projeto com resultados positivos voltava a crer que havia, de fato, a possibilidade de um futuro melhor para muita gente.
Lamentava que o Brasil tivesse tomado um rumo tão contrário ao que vinha se tornando regra em quase todo o mundo. Verdade que os Estados Unidos e outros países também tinham feito opções muito à direita, com um claro projeto de exclusão social, mas a natureza dos problemas urbanos dos países ricos tinha tido solução muito antes, na maior parte dos casos. O transporte público de qualidade amenizava a exclusão territorial em cidades como Londres, Paris e Nova Iorque. A própria estrutura social, em que pesem as desigualdades que também existem nesses lugares, era mais favorável que a do Brasil, que tem um dos maiores índices de desigualdade do mundo. Aqui, havia muitíssimo o que se fazer e essa “pausa” nos projetos de inclusão social equivaleria a um retrocesso de muitos anos.
Absorto em seus pensamentos, chegou ao Largo da Carioca, onde a velha rua deságua no delta formado pelas ruas da Assembleia e São José. Um único prédio, enorme, ocupa a ilha triangular formada pelas duas ruas e pela Rio Branco. E foi ali, parado sob os pilotis do edifício, na calçada da São José com Rio Branco, pensando se tomaria um mate gelado numa lanchonete, que sentiu o toque no ombro e virou-se pra ver quem era.
- Nestorzinho!!!
A voz forte e aguda do Almir não mudara com o tempo. Ele mudara. Era o playboyzinho da turma, nos tempos de UFRJ. Sempre bronzeado, bonito, o preferido das meninas. Nunca faltava dinheiro pra ele, filho de alto funcionário de instituições financeiras. O pai trocava às vezes de banco, mas sempre para posições melhores. Duas ou três vezes nos quatro anos em que estudaram juntos. Agora parecia meio acabado, talvez pelo excesso de sol ou de álcool, ou qualquer outro excesso. O Almir era dos excessos. O terno surrado e de caimento duvidoso nem de longe fazia lembrar as camisas de surfe com que Almir desfilava na faculdade. Tinha uma coleção de roupas compradas no Havaí, que sozinhas eram responsáveis por grande parte do sucesso do Mi com as meninas da época.
- Mi!!! Há quanto tempo!
A saudação efusiva escondia um misto de sentimentos. A principal preocupação era com a responsabilidade de apresentar o seminário dali a uns 40 minutos. A outra era com o que poderia advir daquela conversa, tantos anos depois. E com um nem tão amigo, colega de faculdade, com quem nunca compartilhara amizades, grupos de estudo, festas, nada. Eram da mesma turma, não mais que isso. Num universo relativamente pequeno, todos se conheciam e se tratavam cordialmente, mas amizade é diferente. Os comportamentos não eram muito diferentes. Quase todo mundo bebia demais nos anos 80. Quase todo mundo ficava no sol por horas a fio. Quase todos fumavam muito. Para a maioria, as preocupações vieram depois. De qualquer forma, tolhidos pelos recursos ou pela distância, nem todo mundo vivia na praia ou tinha dinheiro para a cerveja ou cigarro. Nestor era desses. Bebia se lhe dessem, ou perto da época do pagamento da bolsa de monitoria. Praia era rara, morava longe. Cigarro nunca gostou, mas não tinha preconceito nenhum.
- Como andam as coisas? O que você tem feito? Perguntou o Nestor, imaginando eventualmente ter que abreviar o assunto, porque o tempo se esgotava perigosamente. E ele nem tinha tanto interesse assim em saber o que o Almir tinha feito da vida.
- Nada demais, respondeu o Almir. Completou dizendo que agora assessorava um vereador, que algumas coisas tinham dado errado. Estava casado pela terceira vez, tinha um neto da primeira filha, que tinha uma loja de lingerie na SAARA. Morava no Bairro de Fátima, ali perto da Lapa.
Nestor refletiu rápido e imaginou que só alguma coisa muito séria justificaria uma derrubada tão grande no padrão de vida do Almir que ele conhecia. Sem meias palavras, ouviu do Almir que o pai dele tinha sido visitado pela Polícia Federal na época dos grandes escândalos financeiros e não teve mais como esconder que vinha lesando o sistema financeiro havia muito tempo. De uma hora para a outra o sonho acabou. Apartamentos na orla, fazendas no interior, muitas viagens ao exterior, os melhores hotéis, as melhores férias.
Ouça João das Ruas do Rio, de Tuninho Galante, no Youtube.
Almir teve que reconstruir sua vida sem a mãe, levada por um infarto fulminante assim que a imprensa publicou as descobertas da investigação. O pai não resistiu muito à cadeia. Em cinco anos, dos 17 a que foi condenado, foi internado com tuberculose e morreu em poucos meses.
O patrimônio foi todo restituído a empresas e bancos lesados, incluindo aí ao menos um banco público, pessoas físicas e entidades assistenciais.
Almir, então já empregado em uma grande instituição financeira, foi posto na rua em virtude da relação com o fraudador e teve que reconstruir a vida como escriturário, caixa de banco pequeno, depois de ter sido economista chefe em banco estrangeiro, indicado pelo pai. Agora, já sem saúde para a demanda das agências, foi demitido e passou a trabalhar com o vereador.
O tempo foi passando. Nos dez minutos finais, muito impressionado com a história, Nestor descobriu o pior. Sabia que a máscara não era obrigatória em espaços abertos no Rio. Ele mesmo trazia a sua KN95 no bolso interno do paletó, enquanto caminhava, evitando o contato direto com os outros. Quis saber como tinha sido a travessia da pandemia pelo Almir, que afinal tinha até netos.
Almir xingou meia dúzia de palavrões contra as medidas de isolamento, máscaras e vacinas, deixando cair, num movimento brusco, um panfleto de um vereador de partido ligado ao governo federal. Nestor reconheceu, na foto, o vereador já envolvido em escândalos de funcionários fantasmas, ligação com milícias... Acompanhava, mesmo morando fora, o noticiário do Rio.
- O chefe deve estar precisando de mim... Pensou alto o Almir.
Era a deixa que o Nestor precisava pra sair, já em cima da hora.
Despediu-se sem trocar telefone com o Almir e saiu pensando consigo mesmo:
- Tem gente que não aprende com a vida...
Poucos minutos depois, após ser saudado como um bom filho que torna à casa para tentar melhorar a vida de quem vive aqui, abriu a intervenção no seminário com a primeira frase que pensou:
- As calçadas da Rio Branco já viram muita coisa...
Rio de Janeiro, janeiro de 2022.
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