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Foto do escritorLéo Viana

REENCONTRO (2)



Trem lotado. Aquela freada de arrumação já conhecida que acontece na reta entre Deodoro e Marechal Hermes. O Luquinha vinha de Japeri, já tinha um tempo de viagem razoável e a perspectiva de chegar à Central ainda era um projeto em fase inicial, como diria um dos professores da faculdade de administração que ele recém iniciara, e pra onde iria depois do dia de expediente na loja de roupas na SAARA, ali na Senhor dos Passos.


Na freada brusca, o deslocamento dos corpos no vagão, prejudicado pela falta de espaço livre, ocorre compulsoriamente. Há inclusive um fenômeno não explicado cientificamente, que faz com que corpos ocupem o mesmo lugar no espaço, ao menos por um tempo infinitesimal. Neste instante, por vezes ocorre que um corpo humano se desloque entre os demais de um ponto a outro do vagão ignorando a existência daqueles que estavam localizados à sua frente.


Numa dessas ocorrências, o Luquinha tentava ouvir uma aula gravada de empreendedorismo, aquela disciplina que normalmente visa à criação de hordas de Marks Zuckerbergs, Elons Musks, Steves Jobs e Bills Gates, mas que via de regra funciona como um tipo de autoescola para o Uber, quando foi bruscamente atingido por um corpo em movimento. A alma que habitava o corpanzil de quase dois metros de altura e que a inércia havia arremessado em cima do Luca, que também não entendeu fisicamente o que tinha ocorrido, reconheceu o atingido.

- Pô, irmão, desculpa aí, o trem freou e... Luquinha?? É você? ?


O Luquinha ainda se recuperava do choque quando olhou pra cima e reconheceu o amigo de escola, lá da turma da Tia Ceci, professorinha que alfabetizou mais da metade do bairro onde , quando crianças. O Zezão era o maior da turma, gente boa, raciocínio meio lento, mas amigo pra toda hora. Quando Luquinha deixou Bangu com os pais pra viver em Japeri, por volta da quinta série, perdeu completamente o contato.


- Zezão!! Quanto tempo, cara! De onde você tá vindo? Esse trem não passa em Bangu...

- Sabe de nada, tô mais em Bangu não. Fui pra Nova Iguaçu com a família mais ou menos na época que você foi embora também.


- Mas diga aí, cacete! Como tá a vida? Tempão sem saber de ninguém!

- Pô, não sei de todo mundo não, mas um ou outro...

- Então fala de você e da galera.


- Bom, eu casei com a prima do Waldir, a Margaridinha, aquela que jogava handebol na seleção da escola, lembra? Mas aí a mãe dela não gostava de mim e chamou o Pedro, aquele do vôlei, grandão, pra dar em cima dela. Pô! Sacanagem da coroa! A relação com a sogra começou mal. A merda é que o cara insistia, a Margô dizia que não queria nada e ele seguia mandando cartinha, flor, chocolate. Acho até que era a velha que comprava. Ele era duro. Mas a Margô gosta de mim, sempre gostou e resistiu. Um dia, ele exagerou e dei um cacete nele. Mexeu comigo demais. Mas não fiz todos aqueles anos de judô à toa, né? A velha passou o fim do ano passado na porta do quartel, na Central. Se a Margaridinha não gostasse muito da mãe, a irresponsável estaria lá até hoje. Agora tá em Bangu com os irmãos.

- Caramba...

- O Vitinho, filho da Dona Zita, virou militar do exército. Ganhou uma bolsa pra um cursinho preparatório e agora tá lá em Resende, formado, mas ainda trabalhando nas Agulhas Negras. Ficou meio metido no início, mas ao longo do governo Bolsonaro ele tomou jeito. Já quer sair e fazer carreira fora, porque com esses colegas dele aí, negócio de Pazuello, Mauro Cid, Heleno, Mourão, tem gente demais sacaneando ele no futebol de fim de semana.


- Que coisa...

- O Andrezinho, filho do João do Gás, mesmo com o pai tentando ser sempre vereador pela esquerda, deu de seguir o bolsonarismo. Até passou a andar só de verde e amarelo, gritar “mito” sozinho no meio da rua e tal. Quando tentaram internar, disse que não era louco, que era um patriota preocupado com o futuro das criancinhas e até conseguiu um atestado médico a seu favor, informando que gozava de pleno domínio das faculdades mentais. Mas terminou preso em Brasília, porque foi flagrado armado na confusão do oito de janeiro, dentro do STF. Maluco podia não ser, mas tem algum problema. E tentou me convencer a ler o tal de Olavo um monte de vezes...


- Rapaz...

- O Samuca é Uber. Largou a escola e decidiu que ia ficar rico dirigindo um Corsa reformado que o Luis Mecânico emprestou pra ele. Mas dificilmente faz corrida fora de Bangu, porque não arrisca pegar a Avenida Brasil. Da última vez, quebrou antes de chegar a Realengo, foi rebocado e gastou a féria do dia pra retirar a lata velha do depósito. Agora tá devendo dinheiro. E o carro com aquela bandeirinha do Brasil no vidro traseiro. “Lutando contra o comunismo”, ele disse.

O trem encostou na Central e os dois amigos saíram juntos pra tomar um caldo de cana antes de seguirem pra seus trabalhos.


- Parece que pirou todo mundo, né?

- É piração não, Luquinha. É gente ruim mesmo. Tudo metido a religioso, mas podendo desejar mal dos outros, nem pensa duas vezes! Tá bonito de ver agora com essa encrenca da venda das joias que o capitão deles ganhou. Já ouvi até que “se ele der o dízimo, tudo bem”.

- Zezão, meu bom, vou ter que vazar. O chinês não dá mole e o horário tá apertando. Você vai pra onde?

- Tô indo aqui pra Frei Caneca, loja de madeiras do meu cunhado, o marido da Zezinha, minha irmã. Depois vou pra faculdade de economia. Fazendo à noite.

- Maneiro. Tamos juntos.


Trocaram telefones.

- Bora ficar muito tempo sem se falar não. Se eu encontrasse um desses aí pela rua, não ia saber com quem estava falando direito. Abração!

- Formô!


Rio de Janeiro, agosto de 2023.


 

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