Reflexões de hospital
Não consigo estimar quantas vezes entrei ou sai pela porta do apartamento 12 do edifício Barcelona nos últimos trinta anos, mas na última semana consigo dizer esse número com exatidão, nenhuma vez.
A Covid-19 me proporcionou uma experiência de aproximação comigo mesmo, fazendo eu refletir não só sobre a doença, mas sobre a vida.
Pensando bem sobre isso não tem como não visualizar a porta em questão, seus detalhes em marrom, o extintor ao lado, a caixinha da TV a cabo e até as patinhas da Nina sempre aparecendo pelo vão inferior como que me lembrando que ela está ali.
Minha última semana, no entanto, me trouxe novas companhias.
Da poltrona verde onde passei a maior parte do tempo vejo a cama hospitalar do lado direito, a TV em frente que não liguei nenhuma vez, a janela do lado esquerdo onde consigo ver as paredes cinzas com janelas brancas do prédio em frente, um pedaço do céu com cerca de um metro de comprimento, e a copa de uma árvore dando um pequeno verde a cena.
As horas passam devagar por aqui, medicação, café da manhã, medicação, almoço e logo as meninas começam a entrar e sair, são os momentos pra colocar a conversa em dia.
Hematomas nos dedos, nos braços e na barriga ajudam a gente lembrar o que está acontecendo, mas alguns já se foram, não querem mais fazer parte da galera do quarto 128.
Quem será que está de plantão hoje?
Assim como a enfermagem faz com a gente, também busco características para identificá-las, acho mais fácil que gravar o nome de todo mundo.
Algumas a gente acaba gravando como, por exemplo, a Cícera que já chega botando todo mundo pra cima.
Talvez seja a Thayrine, tão novinha e sempre me fala do seu filhinho de 8 anos que também tem diabetes. Eu acho que crianças não deveriam ter diabetes.
Umas são sérias, falam pouco, têm mãos leves, pesadas, mas uma eu não vou me esquecer.
Não tem um motivo especial mas a enfermeira Sandra vai ficar na minha lembrança porque passou a noite tentando colher em vão meu sangue arterial.
“Vou desistir seu Paulo!”
De jeito nenhum Sandra, preciso que você consiga, não me deixa na mão agora.
Sim ela conseguiu, eu precisava que ela finalizasse essa coleta.
E o dia segue, a noite também.
Tá chegando a hora da medicação, mais picada, mais hematomas, almoço, café, melhor ouvir uma play list nova.
Andar pelo quarto, respirar, coisas simples que precisam ser feitas com cautela.
Enquanto olho pela janela e ouço o pessoal conversando percebo o quanto sinto falta de casa, que ainda não chorei e que talvez seja melhor manter o foco.
Não sei como será quando vencer o último degrau do edifício Barcelona e ver as patinhas da Nina do outro lado da porta.
Talvez eu chore, mas tudo bem, acho que será por um bom motivo.
Penso que está cada vez mais perto a hora de voltar pra casa, penso nas pessoas que estão do lado de fora, e espero que eu saia melhor daqui.
Não melhor da Covid-19, isso é óbvio demais, melhor como ser humano, como pai, como marido, como amigo, afinal isso tudo terá que servir para alguma coisa... no final sempre serve.
Ia me esquecendo, não vou mais reclamar do barulho da reforma no apartamento ao lado, nem das brigas entre vizinhos ou dos latidos dos cachorros, mas se por acaso eu me esquecer disso e voltar a ficar ranzinza por causa da liberdade disponível, é só me lembrar da janela, dos hematomas e do tempo que passa diferente por aqui, a ordem estará restabelecida mais uma vez, é isso que almejo, é isso que espero.
Paulo Eduardo Ribeiro, do Canal Ponte Aérea, para CRIATIVOS!
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