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Foto do escritorLéo Viana

RISOS


Ele parou de rir quando a emenda das Diretas foi rejeitada. Tinha voltado a se alegrar uns anos antes, quando o AI-5 foi revogado, mas achava que alegria de pobre dura pouco e essas coisas. A eleição do Brizola deu um respiro.


Alguns bons governadores foram eleitos naquela primeira leva, mas ainda sob o governo do Figueiredo. Não estava triste, tinham acontecido a anistia e a abertura, mas não era caso pra gargalhadas ainda. A iminência de um governo civil era uma grande razão pra festa, mas o formato da sucessão não estava definido. Quando a massa voltou às ruas pelas diretas e foi apresentada a emenda Dante de Oliveira, achou que, agora sim, poderia mostrar as obturações todas ou, quem sabe, ao menos rir discretamente. Mas deu errado. A emenda foi rejeitada e travou de uma vez diversos sorrisos em potencial, guardados havia tanto tempo.


De lá pra cá, com o tempo passando, foram muitos momentos de quase riso. A queda das ditaduras na América Latina, os shows do Rock in Rio, as copas do mundo de 94 e 2002, tantos carnavais, tantos botequins. Alegria, sim. Mas muito mais contida que o normal, mais presa do que recomendam os cardiologistas. Enfim, era o jeito.

Bebeu escondido a queda do muro de Berlim, face ao colapso do projeto do leste, contaminado pelos projetos pessoais dos líderes e pela ilusão da riqueza do oeste, sempre mal dividida. Sem comemorar, no entanto.


Erundina, Marta, Olívio, Tarso, Lula, Dilma, grandes momentos. Recuperação histórica, universidades abertas ao povo, viagens ao exterior, comida na mesa, estabilidade econômica, reconhecimento internacional, alguns bons governos em estados e prefeituras. Obviamente, não só na esquerda, mas mesmo no centro houve boas iniciativas. Ensaiou comemorar. Brindou até. Mas entre erros e acertos optou por não gargalhar. O saldo ainda era negativo.



 

Hora de escutar música: mistura brasileira na Spotify.

 

Chorar, chorou muito. Teve Vigário Geral, Paraisópolis, Candelária. As guerras imbecis das Malvinas, do Iraque, do Afeganistão, dos Balcãs. Israel e Palestina. Lamentou os atentados todos, em NY, Paris, Madrid, no Quênia, na Argentina. Sofreu também com os imigrantes na Europa e nos Estados Unidos. Os massacres, ocorressem eles na Praça da Paz Celestial, numa escola americana ou em Realengo, no Pará ou onde quer que fossem, eram sempre mais uma pedra no já apertado sapato da humanidade. Não há dedo mindinho que resista.

Jura que ensaiou abrir um sorriso ante a aproximação de Obama com Raul Castro. Teve até visita. Mas preferiu esperar mais. Não sabia o que pensar depois de tanto tempo. Se conteve e optou por guardar os dentes pra ocasião mais significativa.


Acabou se decepcionando ainda mais. Lamentou sozinho as suspeitas e as comprovações de corrupção. Mais ainda porque lembra que esse discurso sempre antecede a momentos geralmente ainda piores da história. A Alemanha tentou disfarçar o rancor com a derrota na guerra de 14-18 com um enlouquecido combate à corrupção, que deu sustentação àquela parte da história que a gente conhece e que envergonha o mundo há tempos, tanto que talvez até mesmo justificasse o fim definitivo dos sorrisos.


Preferia, no entanto, não pensar assim. É preciso cantar, disse o poeta. Acreditava piamente nisso. Tanto que voltou a considerar a possibilidade de sorrisos diante dos temas memoráveis das escolas de samba na segunda década do século XXI. Beija Flor, Portela, Mangueira e Tuiuti, mas também Salgueiro e outras alteraram de maneira significativa o jeito de contar as histórias, trazendo pra si um questionamento que parecia desaparecer na sociedade. Preferiu economizar. Uma taça de vinho, uma celebração formal e contida, sempre.


Mas o tempo, inclemente, não deixa espaço para adiamentos permanentes. E a manutenção desse estado de semi-tristeza - ou semi-alegria - parecia em nada contribuir para que o quadro evoluísse de alguma maneira. Pensou, pensou, pensou e quando se dispôs a reduzir de vez as exigências - ao menos um sorrisinho lateral, pra aliviar a musculatura facial - veio a máscara, que escondeu de vez qualquer possibilidade de gracejos visíveis. Não que ela, a máscara, complicasse alguma coisa; mas o que ela simbolizava, ao menos em tese, impediria qualquer alegria por um período de tempo ainda incerto.


 

Música instrumental, pra aguentar esse rojão! Escute a Playlist no Youtube.

 

Resolveu estabelecer uma meta! Ante o risco representado pelo vírus e assistindo com incontida tristeza ao avanço da morte, subsidiada pela necropolítica governamental, precisava de razão pra sorrir. Vieram o massacre do Jacarezinho e as mortes violentas de crianças e mulheres em quantidades industriais. Ia ficando cada vez mais difícil.

Decidiu! Sorriria por pequenas coisas, mas elas pareciam insistir em não acontecer.

Desde 1984, coincidentemente o nome do Livro do George Orwell que tirou a vontade de sorrir de muita gente, quase quarenta anos sem uma gargalhadinha, menor que fosse, era demais pra um coração. E de menos para uma arcada dentária.


Foi sozinho ao posto de saúde. E sorriu quando a enfermeira, já cansada, mas ainda gentil e atenciosa, aplicou a segunda dose da vacina em seu braço.

Reconheceu que tinha sido exigente demais.


Gargalhou alto, babou a máscara e teve que trocar.


Em casa, escuta Aldir Blanc, Paulo Cesar Pinheiro, Paulinho da Viola, Chico, Gil, Caetano, Alceu, Dona Ivone, Mauro Duarte, Vinicius, Tom, Gudin, Adoniram, Vanzolini. Os mais antigos ajudam a tirar o atraso da felicidade presa por tantos anos. E ri, ensaiando para o momento em que todo esse riso contido vai ser liberado como uma grande força da natureza.


Os amigos tem dito que há um evento marcado para 2022.


Rio de Janeiro, maio de 2021


 

O que rola de interessante na internet?


Por Dentro da Cedro Rosa / Reunião de Pauta


Escuta essa playlist! Esquentando os Tamborins.




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