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Foto do escritorLéo Viana

Silvinha


Leo Viana

- Olha ela!! Que linda! Uma patriotinha!!! Quando crescer vai dar muito orgulho ao Brasil!


Era difícil conter a empolgação dos pais da Silvinha nos anos 60. Com o tradicional retardo que aflige a nossa história em relação aos acontecimentos do resto do mundo, vivia-se um macartismo enlouquecido. Uma das consequências do medo desesperado do comunismo, alimentado pelas escolas, pela imprensa e por grande parte dos formadores de opinião da época, foi o investimento na formação de pequenos patriotas, treinados para agitar bandeirinhas ante a passagem de autoridades, desfilar orgulhosos em paradas militares, manifestar fervor quase religioso diante dos temas relacionados àquele conceito de pátria.


Silvinha cresceu envolvida nesse ambiente esquisito e, pra quem lembra, dominante. Aos 10 anos virou a baliza da turma, aquela menina bonita que vai na frente do desfile com o bastão. Corria o ano de 1968, a radicalização da repressão veio no fim do ano, com o AI-5, comemorado em coro pelos parentes da menina. E por ela também, sem a exata noção do que significava aquela coisa toda, mas entendendo que se tratava de uma medida patriota, como eram todas aquelas tomadas pelos generais que governavam o país e por seu séquito de nacionalistas abnegados, preocupados com a defesa das famílias e da pátria, que viviam a iminência da dominação comunista. Afinal, eles estavam em toda parte e pareciam ter superpoderes. Só assim, na cabeça de criança da garotinha, pra ameaçar simultaneamente os Estados Unidos e cada uma das famílias brasileiras, especialmente suas crianças. Devia se tratar, obviamente, de um exército quase infinito de bichos papões e homens do saco. Não restava dúvida.


Chora cavaco, ótima playlist de samba, na Spotify.


O início dos anos 70 foi em clima de festa. Além dos incríveis e invencíveis craques de 70, que trouxeram do México a Jules Rimet e o orgulho da pátria de chuteiras, o PIB cresceu acima de 10% ao ano entre 1968 e 1973, chegando a incríveis 14% no último ano da série. A Silvinha, aos 15 anos, não estava especialmente interessada nisso, mas ouvia em casa que o Brasil era um milagre de desenvolvimento e que em breve, graças aos militares, seriamos uma das maiores economias do mundo. E ainda tínhamos a Amazônia (o “inferno verde”, a “hiléia”), o Pantanal, as Cataratas, Sete Quedas e mais um monte de maravilhas, orgulhos da pátria.


A vida mudou um pouco quando o pai da Silvinha, honrado e religioso pai de família, mergulhado até as vísceras na crença de que deveria defender a família da ameaça herético-comunista que estava em toda parte, decidiu abandonar o emprego na montadora de automóveis alemã em que trabalhava. Os trabalhadores vinham dando sinais de organização de um modo francamente comunista. Alguns, barbudos e malvestidos, vinham puxando um movimento no interior da fábrica que ameaçava claramente a estabilidade dos demais, visto que ousava questionar a política de salários e a acumulação de lucros pela empresa, que não repassava nada de seus ganhos crescentes aos trabalhadores. Mas isso, tinha certeza, era um direito dos patrões, que por méritos próprios haviam construído um império daquele tamanho. O que aquela meia dúzia de trabalhadores do sindicato queria? Desestabilizar a fábrica? Implantar o comunismo?


Não permaneceria naquele antro. Os patrões pareciam não reagir à altura. Alemães fracos!! Pusilânimes!! Não à toa perderam a guerra para os aliados e, vá lá, para os comunistas. Não seria ele, um patriota, obrigado a conviver com aqueles subversivos no dia a dia.

A Silvinha crescia e, influenciada pelo pai, se tornava cada vez mais patriota. A mãe, acostumada a não opinar, limitava-se a rezar, nas missas quase diárias, pelo futuro da filhinha, que em breve se prepararia para ingressar na universidade, outro antro comunista. Em conjunto com o pai, decidiram que em nenhuma hipótese a filha entraria em universidade pública. Elas eram dominadas por professores que deveriam ter sido cassados. E com a iminência da anistia, elas seriam invadidas novamente pelos que haviam sido cassados.


O melhor da MPB, nesta playlist do Youtube.


A Silvinha, pouco interessada nos problemas do Brasil, que praticamente não existiam em sua mentezinha patriota (os maiores deles tinham sido as derrotas da seleção em 1974 para os devassos holandeses e para os polacos comunistas...), ingressou no curso de arquitetura de uma universidade particular. Sabia, vagamente, que o arquiteto de Brasília era um comunista, mas havia coisas bonitas feitas por arquitetos não amaldiçoados!

O pai, que tinha se tornado sócio de uma concessionária de automóveis (de outra marca, jamais daqueles alemães libertinos e cujos carros eram produzidos por operários comunas!), deixou um dia de trabalho para levar a imaculada patriotinha à universidade para as suas primeiras aulas. Não houve nenhum grande sofrimento. As escolas religiosas haviam preparado bem a Silvinha para os desafios iniciais do curso. Ela era muito boa em matemática, física e desenho. Não era uma especialista em história da arte, mas aprendia fácil. Tinha poucos amigos, visto que qualquer um podia representar uma ameaça, como diziam seus pais. Imagine se aproximar de um filho de comunistas?


Juanito era filho de chilenos que haviam vindo para o Brasil, ilegalmente, quando da queda e assassinato de Allende. Sabiam eles que o Brasil não era exatamente acolhedor naquele momento, governado que era por amigos do ditador de lá. Mas a ditadura sempre comportou compadrios, isso não é novidade. O pai de Juanito havia trabalhado no governo chileno e desenvolvera uma amizade com um colega diplomata brasileiro, que foi fundamental na obtenção de documentos e estabelecimento da família aqui.

O coraçãozinho patriota da Silvinha balançou pelo Juanito logo no primeiro dia de aulas. Filho de diplomatas, o menino conhecia muito do mundo, falava três idiomas e discutia os temas com desenvoltura e um sotaque que era um charme. Verdade que nem sempre concordava com os professores, o que ia de encontro aos pressupostos da Silvinha, mas parecia tão verdadeiro... Como podia um garoto de 18 anos discordar dos professores daquela tão conceituada universidade católica?


Resistiu o quanto pôde, mas seu raciocínio em verde e amarelo não era páreo para a inteligência internacional do chileninho. Em três semestres, a despeito de posições divergentes sobre alguns temas, de embates mais ou menos acalorados sobre internacionalismo, projetos de habitação popular, importância de espaços de socialização e educação ambiental, Juanito já tinha conquistado em definitivo o posto de melhor amigo. Não frequentavam as casas um do outro por motivos mais ou menos óbvios. Os pais de Juanito não gostavam de exposição e os de Silvinha não gostavam de estrangeiros, mormente latinos. Mas foi ele, Juanito, quem conseguiu o estágio no BNH para os dois, em pleno embate sobre o modelo de grandes projetos adotado pelos países do leste e por Cuba, mas também utilizado na Europa Ocidental em escala menor, para a resolução especialmente dos problemas de habitação derivados da imigração. O chileno era particularmente favorável ao modelo de reocupação dos centros urbanos, relativamente esvaziados, em muitos casos, pela implantação de novos centros exclusivamente administrativos e financeiros.


O primeiro choque na casa da Silvinha deu-se quando ela, pela primeira vez, discordou do pai quanto aos projetos de ocupação da Amazônia. Argumentou que a floresta poderia significar, no futuro, um ativo maior que o gado e a mineração que se implantavam velozmente, pondo no chão milhares de quilômetros quadrados de vegetação. O pai perdeu a paciência e gritou com ela, defendendo a tese dos militares de que não ocupar seria abrir o caminho à exploração internacional. Comunista, obviamente. Silvinha replicou dizendo que o seu medo eram os países ricos. Levou um tapa.


Leo Viana, Lais Amaral Jr, Antonio Joaquim e Tuninho Galante, em Live sobre Cultura e Política.



A mocinha havia mudado. Calou-se com a cara vermelha da bofetada, mas saiu no dia seguinte para a aula e não voltou. Os pais desconheciam o estágio no BNH e o chileno Juanito. Procuraram na faculdade e não a encontraram. Perguntadas, as colegas não revelaram nada. Não perguntariam a meninos. Ela era uma moça de família!

Os pais de Juanito viabilizaram a ida dos dois jovens para a Suécia. Concluíram o curso de arquitetura lá. Casaram-se, tiveram filhos e só voltaram ao Brasil no início dos anos 2000, aos 45 anos, com os filhos criados, fluentes em sueco, inglês, espanhol e português, ambos formados em engenharia. O pai não perdoava Silvinha, mas a mãe tinha notícias, enviadas secretamente já fazia uns bons anos, incluindo fotos dos netos.


Silvinha lamenta o tempo perdido com aquela bobajada patriota, mas recuperou-se bem. Prepara projetos de habitação popular para subsidiar a discussão dos candidatos de esquerda, viaja pelo interior das regiões mais pobres do país estudando soluções de urbanização, saneamento, energia, abastecimento e transportes. Juanito é alto executivo da ONU, responsável por programas internacionais de apoio a refugiados. Passa muito tempo trabalhando frente ao computador ou em aviões.


Com a vitória do mal nas eleições do Brasil em 2018, chegaram a planejar a volta definitiva à Europa. Não faltaram convites de universidades e organizações. Mas resistiram. Acham que o Brasil ainda tem jeito.

Sonham juntos com o fim da pandemia e com a primeira alvorada de 2023.

E com netos brasileiros!


Rio de Janeiro, janeiro de 2022.


 

Live Reunião de Pauta, com Luiz Guimarães Castro, Luana Oliveira, Leo Leiner

e Tuninho Galante



Canta, Rio.




 

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