SISSI
Ainda que os hábitos e critérios tenham sido atualizados e que se tenha avançado muito nos conceitos, com a revisão de práticas claramente machistas e historicamenteequivocadas, não havia homem ou mulher, cis ou trans, que não considerasse bonita a Sissi. E “bonita” era o adjetivo mínimo, usado por crianças ou pessoas cuja consciência e percepção já estivessem em sintonia com os tempos atuais. A maioria dos homens, sempre um pouco ultrapassados em relação ao tempo em que vivem, usava adjetivos muito menos comedidos pra qualificar a mocinha. Ainda bem que havia um elementoque em geral desconcertava a todos os que passavam por ela. O sorriso, tão perfeito e brilhante, ainda que diante dos absurdos que ouvia, fazia feliz mesmo o mais triste e agressivo dos interlocutores. E não era só isso. O sorriso era genuíno, emitido como resposta a quase qualquer situação, numa demonstração de simpatia que, de tão espontânea, chegava a soar falsa para algumas pessoas. A Sissi era a personificação de um tipo de perfeição, da beleza, da felicidade para muita gente. Homens diversos fantasiavam loucuras com a moça; mulheres a invejavam; adolescentes espinhentos a homenageavam na solidão dos quartos ou banheiros trancados. Do alto de seus 25 anos, a Sissi tinha passado uma adolescência que alguns considerariam difícil. Sempre foi bonita e tratada pela mãe como um bibelô. Sem os exageros dos tratamentos ou loucos procedimentos de beleza, mas a mãe sabia que tinha uma filha linda. Resolveu jamais expor a criança aos horrores dos concursos de beleza e suas sequelas em caso de derrota, além da superexposição que nem sempre permite uma “vida normal” posterior. O pai não ligava muito, confiava na disciplina da mãe. Também sabia, ouvia, observava que tinha uma filha admirada por todos, mas isso não lhe tirava o sono. No extremo, tinha com a Sissi conversas que sua geração recomendava ter com os filhos homens, sobre as vicissitudes da vida e a dureza das relações entre as pessoas. Um tipo de investimento no futuro, coisa de pai conservador nos costumes, mas que busca entender as mudanças que o tempo traz.
A Sissi seguia encantando o mundo à sua volta, até que se encantou com o Alex.
O Alex não era exatamente encantador, numa leitura mais rasa. Além de limitações estéticas notáveis, especialmente considerando a sempre presente comparação com os atributos da Sissi, tinha outros problemas, inclusive aparentemente cognitivos.
Entre os comentários maldosos, o mais recorrente era sobre uma possível habilidade extraordinária do Alex na cama, o que, na cabeça dos comentaristas de plantão, seria a única possibilidade de unir seres tão diametralmente opostos.
A Sissi nunca se importou. Além de bonita, feliz, sorridente e de todas essas qualidades virtualmente superficiais, era inteligente e bem formada, o que a tornava ainda mais fora da curva de uma certa “normalidade estatística” que passa pelo inconsciente geral.
Até pai e mãe, que defendiam a Sissi com unhas e dentes, estranharam a relação. Ela já tinha seu próprio apartamento cuidadosamente decorado, por uma amiga arquiteta, com a belíssima biblioteca que acumulou ao longo dos anos de estudos aprofundados de literatura francesa. O doutorado, recentemente concluído, era a cereja do bolo e, commeros 25 anos, se preparava pra uma temporada de estudos e trabalho na França, a convite de um intelectual famoso, que participou de sua banca no Brasil. Mas o aparecimento do Alex mudou toda a dinâmica.
O Alex parecia perceber que não era exatamente querido pelo entorno da Sissi. As pessoas não se dirigiam a ele, não o viam como digno daquele ícone que a Sissi representava no imaginário de tanta gente. Foi a Sissi quem deu a ele o carro novo que ele passou a usar como motorista de aplicativo.
O segredo custou a ser revelado. Por que, afinal, aquele ser humano estranho, feio e mal ajambrado conquistara o coração da moça mais bonita da rua, do bairro, da universidade, de todos os lugares em que ela, tal qual uma aparição, fez subir a temperatura ou baixar a pressão, a depender das reações? Todo aquele encanto,materializado num ser aparentemente sem defeitos, tinha como companheiro de vida uma “alma sem luz”, como diziam os mais revoltados, todos acreditando ser, eles sim, merecedores dos afagos mais intimos de Sissi.
Ela revelou num almoço em família, com a presença dos amigos e a ausência do Alex, que aliás era quase uma norma. Considerado grosso pelos parentes, não cumprimentava direito as pessoas e era feio. Disse Sissi:
- Passei a vida sendo assediada por homens insuportáveis, que me disseram as maiores barbaridades. Tive medo por toda a vida, apesar da proteção em casa. Mas frequentei a escola, os locais públicos. De adolescentes a idosos, nunca tive a sorte de encontrar um homem que valesse a aproximação. Todos me objetificavam. Minha única arma, o sorriso, era entendido como uma autorização de aproximação. Foi necessário fugir muitas vezes. O Alex não disse nada pra mim. E continua não dizendo. Ele é surdo-mudo e não sabe libras. Aprendeu a dirigir, é carinhoso e cozinha bem. Pra mim, é suficiente!
Houve quem engasgasse.
Rio de Janeiro, agosto de 2024.
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