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Foto do escritorLéo Viana

SONHOS


Só percebeu que a sanidade mental estava escapando quando o sonho teve continuidade pela décima vez. Nas primeiras ocasiões, apesar do impacto, tinha deixado pra lá. Mas agora, com a repetição sistemática e a intervalos cada vez menores, se decidira a procurar ajuda psiquiátrica

.

Era um cidadão de bem, com tudo o que implicava essa titulação ao longo do tempo. Herdeiro, vivera sempre à sombra dos bens da família, sem preocupações mais sérias de natureza material. Um ou outro acordo espúrio aqui ou ali, em nome da manutenção do patrimônio. Alinhamento político sempre à direita, claro, eventualmente com aqueles de práticas menos republicanas, mas tudo no nome, santo, da garantia da livre iniciativa.

Aos quarenta e cinco anos, se sentia bem como nunca e feliz como sempre. Impermeável às notícias que insistiam em mostrar um mundo feio e violento, não percebia essas coisas de dentro do apartamento com vista para o mar e para a favela. O mar de azul infinito à frente, visível das enormes janelas da sala e da piscina na cobertura, era o alívio permanente para as preocupações, que geralmente passavam pela remuneração das aplicações ou pela existência ou não de vagas disponíveis naquele hotelzinho art déco de Miami, onde impressionaria a modelo da vez, recém conquistada numa festinha em São Paulo. Os grandes hotéis de rede não tinham o mesmo charme. E levar para o seu próprio apartamento em Miami poderia criar uma intimidade excessiva. NY, Londres ou Paris só em caso de casamento. Era discreto, não queria o nome nas colunas de fofoca. E essas meninas postam tudo...


A vista da favela, a partir da área de serviço do apartamento - quase nunca frequentada, aliás – não assustava. À noite, era até bonita, com suas luzinhas. Não dá pra ver drama de longe. Eles eram felizes, tinha certeza. Talvez até mais que ele, porque não tinham muita preocupação com regras, com viagens, com investimentos.

Morrem de fome ou tiro, muitas vezes, mas é assim mesmo, não é? Mas quem mandou eles morarem ali?


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Um dia começaram os sonhos. E neles, encadeados como uma série americana de tv, em episódios, o Brasil tinha se tornado muito diferente.

Inicialmente, a vista da favela a partir de seu apartamento no Rio de Janeiro, revelava um bairro fortemente arborizado e com densidade de ocupação muito menor, recortado por vias transitáveis, dotado de infraestrutura de saneamento, serviços de educação e saúde compatíveis com a necessidade. Com a arborização, praticamente não se viam as casas, em geral de apenas um ou dois pavimentos. O que se via eram grandes revoadas de pássaros coloridos, antes só raramente observados. Curiosamente, o mesmo se observava em seus outros apartamentos no Brasil. Em São Paulo, a cobertura no Morumbi com vista para Paraisópolis revelava situação semelhante.


O mesmo ocorria em Salvador e Recife, onde a vista da Boa Viagem para a Brasília Teimosa tinha se tornado menos impactante, com uma evidente melhoria nas condições de vida da população da comunidade pobre.


Não era só isso. Nos jornais não havia notícia de violência. No futuro irreal do sonho, as grandes áreas dominadas por quadrilhas de bandidos fortemente armados haviam sido recuperadas pelas cidades. Ainda havia gente presa por crimes de morte cometidos antes das mudanças estruturais ocorridas, mas em número cada vez menor. As antigas drogas, agora produtos de consumo livre, vendidas sob rigoroso controle público-social, juntamente com álcool e tabaco, geraram forte incremento de impostos ao longo dos anos, mas a importante queda no consumo faz com que estes recursos já não sejam tão relevantes como foram para a implantação da grande rede de assistência em saúde que deu fim à rede privada, cujo marco simbólico final foi o encerramento das atividades de um grande hospital paulista, conhecido por atender aos super ricos.


No decorrer dos sonhos, as revelações não paravam. Uma surpresa a cada noite, sem controle. Já pairava um certo medo de dormir, frente aos incontroláveis absurdos distópicos que se repetiam e se agravavam a cada episódio. Mas adormecia. E sonhava!

A matriz energética havia mudado radicalmente. O Brasil havia recuperado, tempos atrás, o controle sobre suas grandes reservas de petróleo, entregues ao controle estrangeiro em governos anteriores. Entretanto, face à necessidade de abandonar os combustíveis fósseis, unanimidade acordada entre praticamente todos os países do mundo, tinha feito o dever de casa. Foram instaladas gigantescas usinas de energia solar em diversos trechos do território. Estrategicamente localizadas nas áreas anteriormente ocupadas pelos grandes aeroportos, fábricas desativadas, áreas de confinamento de bovinos, fábricas de automóveis e outros colossos de tempos passados. Uma rede monumental de ferrovias, correndo em altíssima velocidade por trilhos ladeados por florestas recuperadas, tornou absolutamente capilar a ligação entre as cidades brasileiras. Restara um único aeroporto, responsável pela ligação com o exterior.



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Com o sistema de ferrovias, todas as capitais brasileiras ficam a um máximo de seis horas de distância de Brasília, onde foi construído o maior terminal aeroportuário do hemisfério ocidental. As aeronaves solares, que voam na mesosfera, a 80 km de altitude, e se valem da rotação da Terra como um componente a mais em seus deslocamentos, atingem velocidades quase indescritíveis e chegam a qualquer país do mundo em menos de cinco horas, o que leva a outro patamar o conceito de urgência vigente por volta do século XXI, por exemplo. Em associação com a internet 15G, as ancestrais videoconferências tornaram-se presenciais. Hologramas das pessoas podem ser baixados a qualquer momento e em qualquer lugar. A densidade de pixels os torna praticamente reais, viabilizando uma conversa “olho no olho” em tempo real.


Uma outra mudança importante ocorreu na agricultura. Todo o volume de hortaliças para atendimento do mercado interno é produzido no perímetro das cidades e, nos casos em que há comercialização, vendido em pequenas feiras. A maior parte é trocada entre as pessoas, já que quase todo mundo produz. As grande áreas produtoras de grãos, especialmente arroz e feijão, não ficam muito distantes das cidades, maiores consumidores. No interior, houve significativa redução da área agrícola, com os aumentos conseguidos na produtividade das principais culturas. Houve ainda um encolhimento importante no consumo de carne de animais de sangue quente, o que implicou redução nos plantios de milho e soja. Grandes lagos naturais e artificiais, de função múltipla e ladeados por florestas imensas, fornecem pescado em quantidades jamais vistas. Os estoques marinhos também aumentaram muito, com o fim da pesca industrial.


O saneamento básico universal foi uma conquista sem precedentes. As tecnologias de despoluição e a renaturalização dos cursos d’água urbanos acabaram levando a cenas absolutamente improváveis, como as pescarias de fim de semana, hoje comuns nos outrora mortos rios Tietê e Pinheiros, ou na grande bacia contribuinte da Baía da Guanabara.

Uma das alterações mais importantes e notáveis foi a obrigatoriedade do plantio de florestas no entorno das ferrovias e a proibição do contato direto entre áreas de agricultura e vias de circulação públicas. As lavouras de grãos, cana, eucalipto e algodão, por exemplo, tem que se situar após uma faixa de 100 metros de floresta nativa ou plantada com espécies nativas diversas. Os pesquisadores vivem apagando nomes das listas de animais em extinção e a criação do maior parque nacional do mundo, abrangendo toda a faixa de 20km a partir do litoral, incluindo aí muitas capitais e a maior parte da população, foi só a cereja do bolo.


O parque eólico, antes restrito a faixas do Nordeste e do Sul, hoje se encontra distribuído por todo o país. Muitos deles no entorno das grandes hidrelétricas e muitos também nas antigas plataformas de petróleo, em alto mar. A utilização da energia das marés e a dessalinização da água do mar, combinadas com a energia solar, resolveram diversos problemas básicos. Há água limpa em todo o interior e todo o litoral, sem problemas com a estação seca e sem sustos no monitoramento dos reservatórios. O sistema de pesquisas, capitaneado por universidades públicas fortes e autônomas, tem soluções já em aplicação ou em andamento para praticamente todos os grandes problemas do passado.


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A universalização total da educação pública integral, a adoção da alfabetização bilíngue obrigatória com opções diversas de segunda língua, além da formação musical e da matemática avançada desde os níveis iniciais, fez surgir uma geração de cientistas comprometidos com a sociedade como jamais observado antes, além de zerar as taxas de violência, o que possibilitou a desmobilização de enormes contingentes de pessoal destinados à segurança.


A produção cultural e artística livre levou a níveis inacreditáveis a música, o cinema, o teatro e as artes plásticas, libertas de qualquer censura ou patrulha.

Estava já internado havia meses em uma clínica de distúrbios do sono quando os eventos terminaram, após causarem um horror final que ele ainda não tinha sentido. Monitorado por equipamentos diversos e acompanhado de perto e de longe por especialistas, sonhou com uma sequência de governos de esquerda democrática durante os quais, investimentos monumentais em educação, saúde e saneamento teriam contribuído nos últimos 50 anos, para a obtenção de resultados tão expressivos. Em 30 anos foram extintas as polícias militares e as armas de fogo proibidas em todas as circunstâncias. As antigas, caras, ociosas e ultrapassadas forças armadas tornaram-se brigadas ambientais e de atendimento de saúde. A redistribuição espontânea da população no território, juntamente com a demarcação definitiva das terras indígenas e quilombolas, acabou com os vazios demográficos e forçou a realização de uma reforma agrária em moldes inéditos.

Acordou suando frio! Foi direto conferir se o carro blindado ainda estava lá, com a 765 no porta luvas. Da janela da clínica dava pra ver uma favela, das piores. Estava lá, sem árvores, com a densidade de sempre e foi possível ouvir ao menos alguns disparos. Os esgotos escorriam pelas vielas úmidas. A poluição do ar e os congestionamentos seguiam firmes e fortes do lado de fora.


No celular, conferiu o noticiário e as últimas negociações do governo para legalizar garimpeiros, madeireiros e grileiros As termoelétricas serão acionadas. O corte de verbas para pesquisas e educação se impõe. O governo tem dívidas de juros que não podem ser adiadas. Milicianos e traficantes desafiam o Estado em bairros periféricos.

Respirou aliviado. Seria muita injustiça com quem trabalhou tanto.

Ainda bem que os pesadelos acabaram.

Rio de janeiro, junho de 2021.

 

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