TEMPO E MEMÓRIA

- O tempo e a memória são desafiantes permanentes, fortes, impávidos e impossíveis de derrotar. No final eles sempre ganham.
O Onofre, que era geriatra, sempre repetia isso. Não tinha certeza se era da lavra dele mesmo ou se alguém já tinha dito. Mas gostava de repetir. Quando entrou na faculdade de medicina, queria cuidar de crianças, sonhava com a pediatria, mas ao longo do curso entendeu que seria ainda mais desafiador tentar decifrar a ação do tempo e da memória no corpo e na saúde humana depois que muita coisa acontecesse, que houvesse experiência acumulada.
Na pediatria talvez faltasse uma quantidade enorme de elementos que possibilitariam uma leitura mais completa, mais definitiva, sobre a forma como o humano reage a todos os estímulos da vida, como se aquilo ficasse registrado num tipo de “caixa preta” da existência, mas cuja leitura seria sempre possível antes da queda do avião, que equivaleria à morte do indivíduo. Eram reflexões que fazia sozinho, com medo de ser considerado louco demais pra ser médico, o que talvez o levasse a não conseguir a confiança de colegas e pacientes. Foi o solitário residente de gerontologia num grande hospital privado, ao final da faculdade. Queria estar em uma unidade de saúde pública, mas a especialidade não foi oferecida naquele momento. Um amigo conseguiu, junto ao pai influente, já aposentado mas ainda trabalhando, que o estranhocolega interessado em velhice cumprisse lá a carga horária necessária.
Vivia refletindo sobre o tempo e buscando respostas em tudo e para tudo. Volta e meia conversava com pessoas mais jovens e falava de coisas que não faziam parte do repertório deles. Queria estabelecer um tipo de “duração” dos fenômenos culturais, algo que estabelecesse uma distinção entre gerações, com base na memória. Sabidamente os grandes marcos culturais influenciam decisivamente as gerações, estabelecem referências de moda, cultura, vocabulário, experiências. Os muito jovens não viram a agonia e morte de Cazuza, um ícone dos movimentos de combate à epidemia de AIDS dos anos 80 e 90, como também sabem pouco sobre as Brigadas Vermelhas da Itália ou sobre o Sendero Luminoso do Peru.
Alguns, mais jovens ainda, não foram súditos de Xuxa, a “Rainha dos Baixinhos”. Gente mais experiente viu Zico jogar futebol, lembra de Sócrates, Junior, Eder, Reinaldo, Falcão, ídolos do futebol brasileiro nos anos 70 e 80. Ou de Paolo Rossi, nosso algoz da época.
Ou ainda de Teófilo Stevenson, um indestrutível boxeador cubano, tricampeão olímpico. O esporte cria referências como poucas atividades, visto que atletas associados às fases vencedoras de clubes ou paísesserão lembrados sempre, mesmo que surjam novos craques e que façam história, que será igualmente lembrada no futuro. No caso da geração Zico, importa dizer que são atletas marcados por fases históricas vencedoras em seus clubes e pela nunca esquecida derrota do chamado “futebol-arte” da seleção de 1982.
O Onofre era persistente. Tinha um questionário básico que usava quase sempre, citava personagens da mídia, da cultura, do esporte, da política. Os do esporte e da música eram muito lembrados. Mais que os do cinema em sua amostragem particular. Para o caso do futebol, gostava de justificar com o forte vínculo emocional das pessoas com seus clubes. As referências culturais de cada época, particularmente a música da juventude de cada geração, parece ocupar um espaço especial na memória.
O hábito de ouvir música também parece aproximar as gerações, tornando possível uma quase fusão de referências antigas com coisas mais recentes e uma surpreendente harmonia entre gerações conflitantes em quase tudo. Descobriu e publicou um trabalho sobre a entãoinaudita importância - praticamente medicinal - de artistas como os da bossa nova, mais Chico, Gil, Caetano, Cartola, Milton, João Bosco, Ivan Lins, Gonzaguinha, Elis Regina, Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione. E de atletas como Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Vavá, Jairzinho, Gerson, Rivelino, Tostão.
A música e o esporte resistem ao esquecimento. O Onofre acompanhava idosos capazes de lembrar letras complicadíssimas de canções ouvidas na juventude, mesmo tendo perdido a maior parte da memória, acometidos de Alzheimer ou outras doenças. Também eram capazes de lembrar detalhes das conquistas da seleção ou de seus clubes, normalmente sem sequer terem visto as cenas, num tempo de televisão limitada ou de maior dificuldade em frequentar estádios.
Passou a dividir seus pacientes e entrevistados entre “jovens” e “não jovens”. Mas ao definir as faixas, abandonou todas as que se situavam abaixo dos 50 anos, de um jeito que precisava pesquisar muito pra criar referências que ele mesmo não possuía, além de ter que conversar de modo natural sobre elas, minimizando o caráter científico da conversa e tentando ser tão realista quanto possível.
Falava, como se tivesse testemunhado, de gente que começou nos anos 50, 60 ou início dos 70. As faixas etárias inferiores, consideradas por ele, nem tinham acompanhado o início de carreira de alguns daqueles artistas. Em muitos casos, eram ídolos de pais e mães.
Coitado do Onofre. O hábito do cachimbo faz a boca ficar torta. Os jovens, pra ele, eram todos os que poderiam ser considerados mais novos que seus pacientes habituais, cada dia mais avançados em idades superiores aos 80.
Não sabia se estava certo. Não tinha certeza de nada. Em algum momento conversou sim, com gente de menos de 30 anos. Mas sentia que isso parecia cada vez mais difícil. Eles não conversavam muito e preferiam responder tudo por escrito, preferencialmente por múltipla escolha. Eles têm dificuldade com textos corridos, mesmo tendo se esforçado pra obter boas notas no ENEM. Estranho fenômeno. Ele mesmo, o Onofre, já se sentia esquisito diante de sua própria geração, então com trinta e poucos.
Um dia, no entanto, despretensiosamente, já imerso neste mundo de mudanças tecnológicas tremendas, que eliminaram as mídias portáteis, por exemplo (não há praticamente mais discos, cds, etc) e tornaram a transmissão da cultura musical um fenômeno do streaming, com a música ao alcance do celular e do fone de ouvido, pois bem, um dia resolveu se concentrar mesmo, em definitivo, no que chamou de “esquecimento geracional seletivo”. Não sabia direito onde estava se metendo, nem se aquilo tinha efetivamente algum futuro. O que sabia é que cada um fazia suas próprias playlists, sem vínculo necessário com o que a mídia “determinava” como já tinha acontecido em outras épocas. Sentia que estava se desviando de seu objetivo, mas “pesquisa é assim mesmo”, pensava.
Entre seus velhos e suas pesquisas, foi vencido pelo tempo, como na máxima que insistia em repetir. O Onofre, aos 40, com muitas e variadas informações na memória,começou a esquecer das coisas. E não houve reza, médico, remédio, erva ou pesquisa que revertesse o quadro.
Com o agravamento da situação, acidentou-se e morreu sem sofrer, sem lembrar, semterminar o que começou, sem fechar os ciclos.
Mas morreu convencido, até onde conseguia lembrar, de que o tempo e a memória são os senhores de tudo.
Talvez, antes de morrer, tenha lembrado de esquecer aquilo que o tempo, nem ele, consegue desfazer.
Nos papéis encontrados amassados no bolso do jaleco que usava o tempo todo, mesmo afastado das funções pela doença, estava escrito: nem tudo é bom de lembrar, mas tem coisa que seria melhor não esquecer. Queria muito lembrar de coisas que estou esquecendo e queria esquecer coisas que não sei nem se aconteceram, mas não saem da lembrança.
Os velhinhos e velhinhas que se tornaram a razão de sua vida, alguns já sem quase nenhuma memória, lembram dele com carinho.
Só morre quem não é lembrado.
O tempo e a memória se encarregam de tudo.
Salvador, março de 2025
Florestas, Sustentabilidade, playlist na Spotify / Cedro Rosa.
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