TIMIDEZ
A timidez da Virginia era superlativa, paradoxalmente. Nascida em família grande, do tipo em que muita gente fala ao mesmo tempo - e alto – a caçula nunca se tornou uma liderança doméstica. Mesmo sendo muito querida e relativamente paparicada por todos, seguiu tímida e introspectiva. Passava por antipática, apesar da índole sempre muito boa, porque não dava bom dia a ninguém com medo de a resposta virar conversa. Evitava no último grau conversar com qualquer pessoa fora do ambiente doméstico, onde se sentia um tiquinho mais à vontade.
Ter vergonha de tudo foi sempre um atravanco à vida da Virginia. Complicou a escola, as consultas médicas, o acompanhamento psicológico, a socialização. Estudiosa, esteve sempre um ponto à frente da média dos colegas, mas foi preciso que a família sempre negociasse previamente com as escolas o tratamento diferenciado para a pequena, que jamais respondeu a uma arguição oral, fosse em público ou não.
Com ela era sempre por escrito. Bastava informar o tema com antecedência e Virgininha sempre se saía bem, mente privilegiada que era. Ao médico foi sempre acompanhada, e cochichava os sintomas pra mãe ou pra irmã mais velha, que repassavam aos médicos dores, febres ou quaisquer outros males. O acompanhamento psicológico, que demandava interpelação pessoal, nunca foi produtivo. Em geral o/a acompanhante tinha que conversar com o/a terapeuta sobre a patológica timidez da Virginia, que permanecia atenta ao que se dizia sobre ela, inclusive – e sempre – sussurrando ao pé do ouvido as eventuais correções.
Cresceu sem amigos fora de casa, sem participar de grupos de trabalho na escola, sem apresentar seminários. Ao menos tinha família grande. A estranha síndrome que acometia a Virginia era absolutamente desconhecida e não parecia ter cura possível. Tudo já havia sido tentado. Não visitava parentes, a não ser na companhia da numerosa família, que lhe fornecia a necessária retaguarda. Os oito irmãos e irmãs garantiam a interlocução fundamental, a conversa pra matar o tempo.
Mas o tempo sempre passa. E no final da adolescência, sem ter participado dos eventos de formatura dos ensinos fundamental e médio, disse em casa que entraria na universidade. Ia prestar o ENEM. Verdade que não havia escolhido nada muito empolgante e ninguém se surpreendeu com a dúvida entre Ciências Atuariais e Contábeis. Aprovada, claro, quando se matriculou em Ciências Contábeis foi necessário que um dos irmãos fosse à universidade pra explicar, pacientemente, o estranho caso da irmã que não se comunicava com pessoas de fora da família. Conversou com a coordenadora do curso, com gente da pró-reitoria de ensino de graduação, com o setor de assistência estudantil. Não seria possível que alguém da família a acompanhasse o tempo todo, e face às limitações flagrantes da Virginia, o tratamento dela deveria ser mesmo diferenciado. A seu favor, contava o desempenho muito acima da média no exame de ingresso.
Levou o curso do seu jeito. Num tempo em que grande parte das universidades oferece cursos online, fazer um curso presencial sem interagir com os outros pode soar esquisito para os mais antigos, mas não chega a ser completamente estranho.
E estava a um passo da conclusão do curso, em novembro de 2022, quando casualmente passou sozinha em frente a uma instalação militar, onde um monte de gente vestida de amarelo e verde, aparentemente com problemas psíquicos muito mais graves que os da Virgininha, usava suas vozes, corpos e tudo o mais pra questionar o resultado das eleições ocorridas pouco antes e pedir a intervenção das forças armadas. Não entendeu direito numa primeira observação, mas quando se deu conta do que estava efetivamente acontecendo, fez um rápido inventário do que havia aprendido em anos de escola.
Casualmente, usava uma camisa vermelha. Havia votado, por óbvio, na oposição ao governo que ameaçava as universidades, os especiais como ela, a saúde de todos, a integridade de todos. Mas a camisa não tinha relação com isso, gostava de vermelho. Entendia muita coisa em seu silencio patológico da vida toda, mas não conseguia entender como aquilo podia ser possível. Aquela gente gritava pelo direito de não falar mais? Esperneava pelo direito à tortura? Queria censura e desaparecimentos? Abominavam o conhecimento? Queriam trevas e ignorância? Mais violência policial, obscurantismo religioso e corrupção não investigada, doméstica?
Juntou forças que não sabia que tinha, aproximou-se do grupo não muito numeroso numa tarde chuvosa, encheu os pulmões de ar e gritou:
- IMBECIS!!! IDIOTAS!!!
Não conseguiu conter um sorrisinho de canto de boca, mesmo tendo sido xingada a plenos pulmões por um grupo de senhoras em formação militar que portavam cartazes em inglês.
Parece que a Virginia está curada. Síndromes psíquicas são sempre surpreendentes.
E tratamentos de choque são efetivamente eficientes em alguns casos.
Rio de Janeiro, novembro de 2022.
PS.: A perda de Gal Costa e Rolando Boldrin nos empobrece como nação, como povo produtor de uma das mais ricas culturas do mundo. Umas das maiores vozes e um dos maiores pesquisadores e defensores da nossa cultura interiorana terem partido no mesmo dia nos abala profundamente e nos alerta para a necessidade de valorizarmos cada vez mais o rico patrimônio musical que possuímos.
Obrigado, Gal
Obrigado, Boldrin.
Foi um prazer incrível ter vivido num Brasil que tem vocês. E que vai continuar tendo, para sempre.
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